SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | Sobre Aborto, STF, e Teoria do Direito: um diálogo

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

E se o aborto de ministros do STF, como a Rosa Weber, fosse legalizado? [Foto: Carlos Moura/SCO/STF]


Não há nada de novo no mundo. O julgamento da ADPF 442 é a continuação de um debate iniciado pelo julgamento de habeas corpus em 2016. Aquilo que escrevi há época, segue valendo para agora. Porém, não escrevi sozinho. Tive ajuda de uma opinião um tanto discordante…


Uruguaiana e Belo Horizonte, 1º de dezembro de 2016.

Inexiste “governo das leis” (rule of law); só o que há é “governo dos homens” (rule of men). Esperar que textos no papel possam ser garantia de segurança, ordem, e justiça é uma ilusão. No fim, qualquer sociedade deve submeter-se ao juízo de “guardiões da Lei”.

A pergunta final sempre se resume em “quem vigia o vigilante”, “quem fiscaliza o fiscal”, “quem corrige o corregedor”, etc. A resposta estarrecedora é “ninguém” – ou “Deus”, o que é praticamente a mesma coisa. É necessário que o vigilante vigie a si mesmo; que o “guardião da Lei” proteja a lei primeiro de si mesmo.

Inexiste “governo das leis”; só o que há é “governo dos homens”. Para que haja um “governo das leis” é necessário que o “governo dos homens” seja composto por pessoas dispostas a se deixarem governar por elas. É preciso que os legisladores, julgadores, aplicadores da lei, e os membros da sociedade em geral reconheçam que a lei que encontram em si não se confunde com sua própria pessoa.

Há mais na Lei do que aquilo que pensamos ser a lei. “Governo das leis” é um “governo dos homens” que reconhece uma “Lei Maior” que lhes é desconhecida; um “governo dos homens” que reconhece que sua vontade, por si só, não faz Direito.

Brasil, novembro de 2016 – no espaço de uma semana, Executivo, Legislativo, e Judiciário deram demonstração de completa alienação diante da situação do país. Os três poderes da República estão em disputa sobre qual vontade deve prevalecer sobre as demais. Temos, portanto, um “governo dos homens”; não, um “governo das leis”.

Em 2016, Brasília mostra-se cada vez mais Versalhes, e o destino da original não foi nada alvissareiro. Querem trocar o atual “governo dos homens” por outro “governo dos homens” sem qualquer deferência à Lei. Do lado de fora, há uma população atônita que ainda crê ser sua vontade a soberana. Em 2016, o Brasil mostra-se cada vez mais França, e o destino da original não foi nada alvissareiro.

Há poucos dias [isto é, ao fim de 2016], a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar um habeas corpus (HC124306), foi responsável por prover um exemplo de “governo dos homens”. Em decisão liderada pelo ministro Roberto Barroso, a maioria da Turma [por 3 votos contra 2] resolveu, por mera vontade, ignorar o disposto nos artigos 124-ss do Código Penal, que tratam do crime de aborto, bem como revogar o disposto no artigo 2º, ‘in fine’, do Código Civil: “…a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Marcelo Sarsur, professor de Direito Penal que concorda com o mérito da decisão, ficou estarrecido com a forma. Isso porque ele acredita em “governo das leis”, tanto que afirmou: “a minha opinião é uma em 200 milhões, não tenho a menor pretensão de impô-la a quem quer que seja. O mesmo não se pode falar do douto Ministro.

O Direito é paradoxal, pois é, o mesmo tempo, impositivo e consensual. Sarsur esqueceu [e também passou-me batido quando conversávamos] que a opinião dos 200 milhões também é uma a mais, considerando-se a de quem já foi, a de quem ainda será, e dos 7 bilhões de pessoas que agora são. Ainda assim, ele experimenta o Direito melhor que os três ministros da opinião vencedora no julgamento do habeas corpus; ministros cujo único trabalho é serem “guardiões da Lei”.

Nós tampouco podemos impor nossa vontade sobre a vontade de quem já veio e daqueles que virão. Democracia, ensina Chesterton, não pode ser confundida por uma “oligarquia dos vivos.” A norma legal está dada, e se vamos mudá-la é necessário que a mudança seja fundamentada e justificada – não é por acaso que justificação e justiça compartilham de uma raiz comum.

Sarsur sabe. No seu perfil do Facebook, ele publicou:

Ninguém discute:

– Se é uma prática necessária em alguns casos (sim);

– Se é uma prática dolorosa e violenta (é também);

– Se a regulamentação do aborto salva vidas (claro);

– Se esta regulamentação deve ser rígida nos critérios adotados (obviamente, a bem da saúde da mulher, sobretudo);

– Se existe vida humana digna de proteção no nascituro (claro);

– Se esta vida está completa e perfeita a partir da fecundação (entendo que não, mas cabe debater);

– Se a mulher tem direito sobre seu corpo e seu potencial reprodutivo (claro), e, especialmente,

– Se esse tema complicado, delicado e plural comporta mais do que uma posição simples de ‘sim’ ou ‘não’.

Parabéns ao ativista de toga. Se queria jogar qualquer tentativa de um debate público, racional e ponderado pela janela, devo dizer que a missão foi absurdamente bem sucedida.

Foi esse post dele que deu início à conversa a seguir, a qual eu gostaria de compartilhar.

[Paulo Sanchotene] – A nossa atual legislação já busca um justo meio ao tolerar aborto por gravidez em caso de estupro.

[Marcelo Sarsur] – Sim, busca. Não é o ideal, longe disso, mas foi o produto de um consenso possível. Para alterar esse ponto de equilíbrio, tem-se o Parlamento.

[P.S.] – É que o consenso segue sendo esse. Se forçarem, pode ir para o lado contrário.

[M.S.]My point exactly.

[P.S.] – Aliás, impressionante a facilidade com que 3 ministros do STF simplesmente se acharam com autoridade para revogar por mero exercício de vontade a segunda parte do art. 2º do CCB.

[M.S.] – Paulo, os mais barrocos diriam art. 2º, “in fine“, do CCB, que tem sua aplicabilidade discutida, mas nunca negada, mesmo por quem defende a descriminalização do aborto. Na tese, defendo o marco da 12ª semana. Creio-o adequado. Mas a minha opinião é uma…

[P.S.] – Será que é mera questão de opinião? Tem maluco que gostaria de revogar o art. 121 [do Código Penal: “Matar alguém”]. Por outro lado, opinião será melhor quanto mais se conhecer o assunto, certo? Para conhecer, tem que se estar disposto a perguntar, a ouvir, a mudar de idéia. Abrir-se à possibilidade de que o art. 121 é errado. Se está certo, sem medo, se chegará a conclusão de que está certo. Sobre o artigo 2º, a melhor explicação que consigo dar sobre a forma como está escrito é a de um consenso entre as perspectivas do pai, “nascimento com vida”, e da mãe, “desde a concepção”. A mulher engravida e imediatamente têm uma relação com o ser dentro dela; já o homem, passamos a gravidez inteira num estado de constante expectativa.

[M.S.] – Mas prevalecendo, seja por realismo, seja por machismo, a postura romana do natalismo. Que é inadequada ao atual estado da técnica médica, e que afronta a própria criminalização do aborto. Entretanto, nenhuma posição pretende usar a ciência como ponto de apoio da decisão, não num campo minado ético como esse. (Cabendo outra pergunta: será que a ciência consegue ser imparcial nessa história?) Ainda: “ser”, desde quando, meu caro amigo? Se um ser é, é porque se faz ser em relação. Qual o início? Na fecundação, na nidação, na formação do sistema nervoso, na percepção do ambiente e da dor? O ser existe de plano, ou se faz ser, se percebe ser?

[P.S.] – Responder-te-ei por pontos:
(I.) Não vejo problema nenhum no natalismo, mas é preciso entender o Direito a partir da perspectiva de “persona”, da máscara teatral. O sujeito de direito é o ator que veste as máscaras, e as relações de direito ocorrem entre os personagens.
(II.) O artigo apenas reconhece que somente o nascido com vida é capaz de vestir as máscaras. Ao sair da barriga da mãe, a criança nasce para o mundo.
(III.) Agora, isso não impede a mulher grávida de vestir a máscara de “mãe” já na concepção. Ao tornar-se mãe com a concepção, ela teria o dever de zelar para que o ser que ela carrega se desenvolva da melhor maneira para que possa tornar-se um sujeito de direito; para que possa nascer para o mundo.
(IV.) Não haveria, portanto, nenhuma inadequação do natalismo romano à técnica médica atual ou à criminalização do aborto.
(V.) A ciência é ferramenta inadequada para responder essa questão. Bioética é filosofia; Teoria do Direito, também.
(VI.) Ser, desde quando? Desde quando ele “é”! No momento em que se torna impossível diferenciar espermatozóide e gameta, algo novo passa a SER.
(VII.) Em relação com o quê? Com quem o gerou. A “mãe” torna-se “mãe” ao carregar esse ser na barriga. Logo, o que está na barriga, esse novo ser, é “filho”; ainda que só para a mãe.
(VIII.) O Direito reconhece que esse “filho” é um sujeito de direito em potencial e protege essa potencialidade ao reconhecer o papel de “mãe”.
(IX.) Com o papel de “mãe”, por relação, vem o papel de “pai”. Até o nascimento com vida, esse papel é exercido apenas em relação à “mãe” e confunde-se com o papel de “marido” – mesmo que inexista casamento formal, afinal trata-se de um papel a ser exercido. É por essa confusão entre “pai” e “marido”, inclusive, que a filiação é presumida na constância do casamento.

[M.S.] – Louvável. Obrigado pela resposta! No tocante ao ponto VII, optar por sair do papel de mãe é aceitável pra uns, optar por sair do papel de contribuinte é aceitável pra outros, optar por sair do papel de eleitor é aceitável pra outros tantos, e por aí vai. Debate é de política pública no sentido mais profundo do termo. Portanto, à mulher é dado optar por não exercer o papel, por não ser mãe? E, se ela é a única pessoa a se relacionar com o feto, ao recusar esse papel, deixa ele de ser?

[P.S.] – “That, detective, is the right question.

Caros leitores, apresentado tópico, o espaço é vosso. Ficai à vontade.

Linque para a publicação no Medium:

https://medium.com/@sancho.brasil/sobre-stf-aborto-e-teoria-do-direito-um-di%C3%A1logo-com-marcelo-sarsur-4b8b20ad29c6

2 COMENTÁRIOS

  1. Inúmeras foram e são as mulheres que recusam o papel de mãe, tal recusa sendo insuficiente para legitimar que sacrifiquem o indivíduo que depende delas para se desenvolver. A mulher que mora por não desempenhar o papel de mãe pode encaminhar o bebê para adoção, mas não é justo que o dilacere.

    • É o que eu acho, Bruna. Entendo que o Marcelo Sarsur foi muito feliz em colocar o tema juntamente com os impostos e as eleições (“… optar por sair do papel de mãe…, …. de contribuinte…, … de eleitor…“).

      Trata-se de um dever. É um fardo. Isso é inegável. Mas a vida tem fardos que recaem sobre nós contra nossa vontade, mas que nos competem carregar.

      Confundimos liberdade com irresponsabilidade. “Nobreza obriga.” E a mulher grávida é a rainha de um reino com um súdito.

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