BRUNA TORLAY丨Homens ruins, leis perversas

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Quem acompanhou a reflexão publicada ontem nesta Revista Esmeril entenderá o propósito desta que sai hoje: comentá-la. É uma réplica destituída de objeção, tipo de conversa a que se chama comentário. Sendo o cerne do artigo de ontem a relação intrínseca entre “qualidade moral” das pessoas que guardam as leis e qualidade das leis, prossigo reforçando a pergunta: é possível esperar leis justas de pessoas ruins?

É claro que não. Leis são sempre pensadas e formuladas por seres-humanos, tendo por lastro a qualidade da alma do ser-humano que a postula. Por isso erram claramente todos os escritores e professores que repetem a arenga segundo a qual Platão teria abandonado as conclusões postas no diálogo A República no último escrito de sua vida, o diálogo As Leis. Esse último escrito, pelo contrário, reafirma o centro da reflexão da obra-prima de Platão: pensar a possibilidade da justiça no mundo exige descobrir o que garante sua aplicação correta. A função dos guardiões da cidade é justamente essa: servir de lastro às leis que boas almas eventualmente formulem. A garantia da conservação da ordem é a justiça, claro. Mas a garantia da conservação da justiça são os homens comprometidos em obedecê-la.

Alguns podem se chocar com a expressão “qualidade da alma”, a começar pela contestação de que exista uma; ou simplesmente apresentando como objeção que não exista diferença qualitativa entre seres-humanos, todos nós sendo equivalentes, do ponto de vista moral. Ambas as objeções são ruins, mas a segunda é pior. A primeira continua tendo de lidar com o problema da consciência. Não existe alma? Certo. Então o que é a consciência? “Ah, é algo diferente disso que você nomeia alma”. Certo, mas você admite a diferença entre consciências boas e ruins, atentas e desatentas, fortes e fracas? Você admite que o uso da consciência diferencia as pessoas em termos morais? A depender da resposta, ele cai na segunda objeção, que merece mais atenção e pode ser resumida em perguntas concretas:

Se não há diferença de qualidade entre seres-humanos, para que existem leis? Se somos todos equivalentes, por que desde o início dos tempos foi preciso estabelecer a medida do comportamento aceitável, e a tábua dos comportamentos recrimináveis, logo, dignos de castigo? Sendo equivalentes, por que até hoje construímos prisões e gastamos tanto tempo discutindo sua necessidade e seus limites?

É uma objeção imbecil demais sustentar que os seres-humanos sejam indiferenciáveis, do ponto de vista moral. Fazer isso é diluir o mérito dos bons e anular a responsabilidade dos maus pelas bondades ou atrocidades que fazem ao próximo. É evidente que há pessoas melhores e piores; numa escala de gradação sutilíssima, beirando tonalidades infinitas da mesma cor, mas há diferença. Procurar o que torna um homem melhor que outro, portanto, é fazer a pergunta certa, quando se trata de apontar quem seria capaz de estabelecer e conservar, para todos nós, leis justas. Os antigos fizeram essa pergunta certa. Também nós a fazemos, ao nosso modo.

Homens de qualidade inferior não se preocupam com o bem-estar do próximo. Apenas com a sua própria. Não se incomodam em acatar que a lei seja expressão do poder, se eles próprios forem o poder. E quando se rebelam contra a tirania do arbítrio alheio, é para defender a maestria do arbítrio seu. Não se importam com a justa medida cabível à totalidade dos homens, mas em fazer uma cadeira de juiz à imagem e semelhança da própria bunda. Foi contra esses homens que Platão escreveu não só A República, como também As Leis, obras cujo cerne o colunista de ontem exprimiu em sua reflexão porque não se trata de invenção de moda de Platão, mas de uma descoberta universal absorvida pela civilização, e cujo abandono abre necessariamente espaço para que homens ruins disparem leis perversas a torto e à direito.

Um caso interessante de atualização dessa reflexão obrigatória, ao se pensar a política em qualquer época, é a Constituição original dos EUA. A preocupação dos fundadores, dos legisladores que a compuseram. não era exatamente o “estado em si”, mas a naturalidade com que homens ruins governam perversamente, fazendo do estado uma lupa do baixo quilate de sua alma. Daí a ideia de criar uma Constituição que limitasse o poder dos guardiões das leis – outro nome para governantes. Com esse expediente, encontraram uma forma de garantir que a liberdade, pelo menos, não fosse submetida ao mau juízo de homens ruins. Leis que limitam os próprios guardiões são uma forma de convoca-los a obediência, garantindo que se recordem do significado da justiça – obediência a um critério de medida externo à vontade individual. Pode-se lamentar a qualidade moral dos indivíduos que hoje vivem sob aquelas leis, mas não a inteligência do expediente: desconfiar seriamente das consequências desastrosas que surgem do vínculo necessário homens ruins/governo perverso.

É de matar de rir quando se repete maquinalmente ser este filósofo isto ou aquilo, quando o campo das ideias corretas é aberto à permanente absorção, revisão e reformulação, o que o torna um campo minado para distorções de toda espécie, em meio a algumas reavaliações justas. Por que é assim? Ora, justamente porque os seres-humanos são diferentes, isto é, a qualidade de alma não é idêntica em nós – o que nos traz de volta ao princípio deste artigo: um comentário à repetição do que o STF tem escancarado para nós há algum tempo: existir uma instituição pensada para conservar as leis não é uma garantia real de que as leis, se boas, serão conservadas. Se uma “instituição” é um conselho de seres-humanos, retornamos ao problema fundamental: a qualidade moral – ou qualidade de alma – desse grupo se presta a realizar a tarefa a eles confiada?

Daí que a obra prima da filosofia política ocidental seja, justamente, uma profunda meditação a respeito da alma humana. Problemas políticos carregam dentro de si o problema moral, e contornar a dificuldade deste problema é simplesmente trocar a pergunta certa por uma infinidade de observações erradas.

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