SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | Brasil Paralelo e os Deputados “Donos do Mandato”

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

Além de outras questões representativas

INTRODUÇÃO

A grandessíssima maioria dos parlamentares alcança votos suficientes para se eleger sem precisar de apoio da legenda. Afirmo isso, mesmo sabendo ser contra o atual senso comum. O fato é que o senso comum está equivocado.

O PROBLEMA

O estopim para esta coluna foi um documentário recente do Brasil Paralelo: A Crise dos Três Poderes. Nessa obra, afirmou-se categoricamente o oposto do que eu disse acima sobre a formação das bancadas na Câmara de Deputados: a grandessíssima maioria dos parlamentares não teria alcançado votos suficientes para se eleger sem apoio da legenda.

O próprio T.S.E. contribui com essa compreensão falaciosa. Por exemplo, em 2010, o tribunal afirmou no Twitter: “Entre os 513 deputados federais eleitos, apenas 35 tiveram votação acima do quociente eleitoral.” Cito um caso de 2010, mas isso é recorrente a cada pleito; e, somado a esforços como o do Brasil Paralelo, o erro fica cada vez mais enraizado no imaginário popular.

O problema aqui é que, apesar de a informação do T.S.E. acima ser verdadeira, dessa NÃO decorre a conclusão adotada pelo Brasil Paralelo e outros. O fato é justamente o contrário.

O SISTEMA PROPORCIONAL DE LISTA ABERTA

Admita-se: o nosso sistema eleitoral para o legislativo (a exceção do Senado) é confuso. Votamos na pessoa, mas esse voto é computado para a legenda.

A soma de votos na legenda determina a distribuição das vagas entre os partidos (i.e., as legendas). Aí, os mais votados dentro de cada legenda ocupam as vagas. O quociente eleitoral é o resultado da soma de todos os votos válidos divididos pelas vagas disponíveis. Somente as legendas que atingirem o quociente têm direito a vaga.

CORRIGINDO O DEBATE

Agora, apesar de eu apresentar isso aqui, tudo isso é irrelevante. Não é necessário entender. Apenas coloquei para mostrar a origem do erro.

De nada vale saber se algum deputado fez mais votos que o quociente eleitoral. Esse dado só é importante para a legenda. Um deputado somente é eleito pela legenda, é “puxado” (como coloquialmente se diz), quando fica em colocação inferior ao número de vagas disponíveis.

A justificativa para isso é simples. A pergunta que se deve fazer é: “teria o deputado X tomado a vaga de alguém com votação maior do que a dele?. Se não tomou a vaga de ninguém, deveria ser óbvio que o deputado X se elegeu pela força dos seus próprios votos, independentemente da legenda.

A VERDADE DOS FATOS

Contudo, essa pergunta jamais é feita. Caso fosse feita, ficaria impossível questionar a legitimidade do mandato da grande maioria dos deputados e vereadores eleitos. Afinal, só é puxado o deputado que, por força da legenda, se elege no lugar de alguém que fizera mais votos do que ele.

Ao contrário do que afirma o Brasil Paralelo, que seria legítimo o mandato de apenas 5,26% dos deputados federais eleitos em 2018 (27/513), a verdade é que tal “legitimidade” alcançaria 87,52% dos mandatários (449/513). Apenas 64 deputados em todo o Brasil precisaram da legenda para eleger-se.

Toda essa confusão do nosso sistema eleitoral afetou apenas 12,48% da composição da atual câmara baixa nacional.

CONCLUSÃO

O nosso sistema pode ser melhor? Pode, claro. Porém, para melhorá-lo é preciso atacar as principais distorções, ao invés de aumentar absurdamente uma para que essa pareça importante. Hoje, a maior distorção de representatividade é o piso de 8 deputados por estado (incluindo o DF) e o teto de 70.

Contudo, dessa, o Brasil Paralelo não falou absolutamente nada.


P.S.: O piso e o teto acabam tirando 41 deputados (-36,94%) aos quais SP teria direito e dão mais a RR (+7), AC (+6), AP (+6), TO (+4), e RO (+4), segundo os números do Censo de 2010.

9 COMENTÁRIOS

  1. No Instagram, rodrigosantus1979 comentou: “li o artigo e o principal não foi explicado”.

    De aí, perguntou:

    “1- qual o número de deputados do quociente eleitoral?
    2- como funciona essa regra e como ela se aplica no novo sistema de federações partidárias?
    3- funciona pra eleger mesmo somente os mais votados?
    4- se não há necessidade de puxador de votos, porque Enéas Carneiro usou deste artifício pra levar mais não sei quantos candidatos do seu partido, nomes desconhecidos e que receberam poucos votos, a serem eleitos; e porque tantos partidos fazem questão de ter um puxador de votos, alguns se valendo de jogadores de futebol, atrizes pornô e celebridades instantâneas pra isso?”

    As perguntas dele são também comuns a outros. Peguei o dele por ser a abordagem mais completa. As questões são todas pertinentes. Publiquei as respostas no Instgram e no Facebook, mas deixo-as registradas aqui também.

    • Primeiro, quero antes reiterar que o “principal” foi, sim, explicado. Divirjo quanto ao que seria o principal.

      Para mim, o principal é que os candidatos mais votados em cada estado, em regra, são eleitos. Independentemente do quociente eleitoral, a grande maioria dos deputados eleitos está entre os mais votados. A exceção são aqueles que acabam puxados pela legenda.

      Eis, pois, a raiz da minha oposição à crença corrente de que na Câmara Federal a grande maioria dos deputados se elegeu pela legenda: se não houvesse legenda, apenas 64 dos deputados eleitos em 2018 seriam diferentes; 87% da casa seria igual.

      Me pediram os dados. Seguem.

      • Por exemplo:
        – O Ceará elege 22 deputados federais. Em 2018, dos 22 candidatos mais votados no estado, 19 foram eleitos. (86%) Apenas 3 foram puxados pela legenda.
        – São Paulo elege 70 deputados federais. Em 2018, dos 70 candidatos mais votados no estado, 63 foram eleitos. (90%) Apenas 7 foram puxados pela legenda.
        – Santa Catarina elege 16 deputados federais. Em 2018, dos 16 candidatos mais votados no estado, 12 foram eleitos. (75%) Apenas 4 foram puxados pela legenda.
        – A Paraíba elege 12 deputados federais. Em 2018, os 12 candidatos mais votados foram eleitos. (100%) Ninguém foi puxado pela legenda.

        A mesma situação se repete em todas as demais unidades federativas.

        • Agora, passo às perguntas.

          “1- qual o número de deputados do quociente eleitoral?”

          O número de deputados usado para o cálculo do quociente eleitoral é o número de vagas na Câmara de cada estado. Em SP, são 70. O quociente eleitoral é calculado pela divisão da soma total de votos válidos a deputado federal em SP por 70.

          “2- como funciona essa regra e como ela se aplica no novo sistema de federações partidárias?”

          A regra é complexa e cheia de detalhes. Simplificadamente, é o seguinte:

          (a) o voto dado a um candidato vale tanto para o candidato quanto para a legenda que ele representa;
          (b) o total de votos da legenda será a soma dos votos de todos os seus candidatos;
          (c) para eleger um candidato, a legenda tem que ter votação superior ao quociente eleitoral;
          (d) para fins eleitorais, os partidos que compõem uma federação partidária serão considerados como uma única legenda – como era quando se permitia coligações; (d.2) a diferença para as coligações é que a federação deve ser mantida durante o mandato, os partidos ficam unidos por 4 anos; e, por fim,
          (e) a votação das legendas que superaram o quociente eleitoral será usada para determinar proporcionalmente as cadeiras destinadas a cada uma dessas.

          • “3- funciona pra eleger mesmo somente os mais votados?”

            Eu nunca disse que “SOMENTE” os mais votados são eleitos. O que afirmei e reafirmei e expresso de novo é que, mesmo com essa regra, a GRANDE MAIORIA dos deputados mais votados em cada estado acaba sendo eleito.

            Isso é demonstrado nos exemplos citados acima.

            “4- se não há necessidade de puxador de votos, porque Enéas Carneiro usou deste artifício pra levar mais não sei quantos candidatos do seu partido, nomes desconhecidos e que receberam poucos votos, a serem eleitos; e porque tantos partidos fazem questão de ter um puxador de votos, alguns se valendo de jogadores de futebol, atrizes pornô e celebridades instantâneas pra isso?”

            De novo, jamais afirmei que o “puxador de votos” seja desnecessário. Afinal, há deputados eleitos que são puxados pelo voto. Um “puxador de votos” é importante no atual sistema, mas é menos relevante do que se acredita.

            O “puxador de votos” ajuda a legenda a aumentar o número de cadeiras a que tem direito, podendo tanto puxar alguém que não esteja entre os mais votados quanto salvar a vaga de um correligionário que esteja entre os mais votados. Isso é de grande valia, e por isso que os partidos buscam ter candidatos assim.

            Porém, a quantidade de vagas afetadas pelo sistema é inferior a 13% do total.

            • Preciso fazer um aparte, alheio à discussão principal. O Oswaldo Domene já resumiu bem a questão, mas vou postar igual.

              Registre-se que há uma lógica coerente e válida por trás da adoção do atual sistema. Por exemplo, esse tem vantagens sobre o “Distritão”. “Distritão” foi o nome dado à proposta de abolição do quociente eleitoral, para que os mais votados em cada estado fossem diretamente eleitos.

              O problema do “Distritão” é a capacidade de gerar uma distorção de representatividade, a qual o quociente eleitoral busca corrigir. É por isso que temos o atual sistema, ao invés de simplesmente elegermos os candidatos mais votados. Explico.

              Imaginemos um candidato extremamente bem votado. O exemplo do Enéas em 2002, que o Rodrigo menciona, é perfeito.

              Naquele ano, Eneás recebeu sozinho 8% dos votos para deputado federal no estado de São Paulo. Tivesse sido ele só eleito, sem puxar outros candidatos do PRONA consigo, Enéas seria um deputado de igual valor aos outros 69 deputados paulistas que se elegeram com votação muito inferior a dele.

              Eis, pois, o problema. Pelo “Distritão”, Eneás não teria no Congresso a força de que sua votação lhe deveria dar. O quociente eleitoral garante aos candidatos representatividade equivalente aos votos recebidos ao permitir que colegas de legenda os acompanhem no exercício do mandato.

              Claro, isso não significa que o sistema seja bom, nem justo. A pequena diferença para o “Distritão” pode inclusive ser considerada insuficiente para justificar sua adoção em oposição àquela proposta. Afinal, o “Distritão” é bem mais simples de se entender. Só não se pode dizer que o atual sistema seja irracional.

            • Por fim, quero deixar claro que particularmente preferiria outros sistemas.

              Contudo, antes de se entrar nessa conversa, é preciso debater, primeiro, as distorções existentes mais relevantes do que o quociente eleitoral. Por isso, mencionei no artigo a questão do piso e do teto de representação.

              O pior problema de representatividade hoje na Câmara Federal é o fato de haver um piso de 8 deputados, quando deveria ser de 1, e um teto de 70 deputados, quando não deveria haver teto algum. Não compete à Câmara igualar os estados.

              O Senado iguala os estados. No Senado, todos os estados são iguais. É justo que assim seja, pois o Senado é a casa dos estados.

              A Câmara é a casa do povo. O povo precisa estar proporcionalmente representado na sua casa. Na Câmara, as pessoas precisam ser iguais. Hoje, não somos.

  2. Eu acho impprtante esse sistema porque valoriza a ideologia de um grupo de candidatos e assim não há “desperdício” de votos. Por exemplo, se houvesse o Partido Ideal com 3 políticos bons que têm os mesmos objetivos, é interessante que os votos que “sobram” de um ajude a eleger o outro.
    Sim, é uma injustiça o Estado de São Paulo ( 30% do PIB nacional e 2° colégio eleitoral) ter que amargar essa sub-representação.

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