ISRAEL SIMÕES | Choquei: um tentáculo pela cabeça

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Se você digitar Preta Gil no Google hoje, verá uma série de notícias sobre o seu tratamento contra o câncer, suas férias em Salvador, os modelos de maiô que afinam sua cintura, opiniões sobre positividade tóxica e um possível retorno aos palcos. Absolutamente nenhuma palavra, pelo menos nos grandes veículos de mídia, sobre a agência de influenciadores Mynd8, da qual ela é sócia-diretora, cuja atuação na internet vem sendo relacionada ao trágico suicídio da jovem Jéssica Vitória, de 22 anos, no interior de Minas Gerais.

A Mynd8 patrocina a página de fofocas Choquei, que publicou um suposto caso amoroso de Jéssica com o famoso influenciador Whindersson Nunes, incluindo prints falsos de conversas que jamais existiram entre os dois. A jovem chegou a fazer um apelo na internet para que não vinculassem mais seu nome ao famoso, expressando, através de uma longa postagem, que o relacionamento foi 100% inventado. Sem dispor de assessoria especializada em notas sucintas, foi ironizada pelo dono da Choquei, Raphael Sousa, que publicou: “Avisa para ela que a redação do Enem já passou. Pelo amor de Deus!”.

Jéssica sofria de depressão e já havia tentado cometer suicídio anteriormente. Quando a história ganhou força nas páginas de internet, sua mãe, Inês Oliveira, publicou um vídeo em suas redes sociais dizendo que a moça não estava bem, pedindo para que as pessoas parassem de envolver a filha naquele disse-me-disse. Mas a Choquei só removeu o conteúdo do ar após a morte da garota.

Com as investigações espontâneas sobre o caso, feita por influenciadores e mídias alternativas, ficou cada vez mais evidente a ligação entre Choquei, Mynd8 e uma lista de celebridades que se utilizam de fofocas produzidas artificialmente para engajar seus nomes nos algoritmos das redes sociais. Mas não espere que o esquema seja escrutinado pelo Fantástico, pela Folha de São Paulo ou que gere palestrinhas do senador Randolfe Rodrigues: reina o mais absoluto silêncio entre defensores do combate às fake news. Foram mídias menores que detalharam a rede de negócios da Mynd8 como Revista Oeste, Jornal BSM, O Antagonista, Gazeta do Povo e especialmente o canal no YouTube do empresário Daniel Penin, que produziu um curta-metragem sobre o caso, Choquei – Lacrando Vidas.

Tanto Preta Gil quanto sua sócia na Mynd8, Fátima Pissarra, fizeram campanha pró-Lula em 2022 e, depois da morte de Jéssica, reavivou-se a suspeita de que a estratégia de marketing do petista envolva a mobilização silenciosa de influenciadores cuja atuação não tem relação direta com a política.

Em uma matéria divulgada em 19 de maio de 2023 na Gazeta do Povo, o jornalista Gabriel Sestrem apontou a publicação simultânea da Choquei, com outras três páginas de fofoca, de uma notícia que poderia, perfeitamente, ser enquadrada como fake news. Elas divulgaram uma suposta redução da desigualdade social por medidas do atual governo, sem mencionar que os dados do IBGE que subsidiaram a matéria eram referentes ao ano de 2022.

A Choquei parece ser apenas a ponta do iceberg de uma rede complexa de notícias, fofocas, impulsionamentos, agenciamento financeiro e a promoção de artistas com posicionamento político de esquerda. Alguns deputados da bancada conservadora já falam em “gabinete do ódio” de Lula, o que levou o ex-presidente Bolsonaro a engrossar o coro e apontar elementos de “abuso de poder econômico” e “disparos em massa” praticados pela chapa vitoriosa nas eleições do ano passado. Repete, assim, as mesmas expressões que compuseram a denúncia feita contra ele ao TSE, que o tornou inelegível.

Diversos influenciadores de direita vêm insistindo na veiculação do tema em suas redes sociais, acusando a Choquei de ser a responsável pela morte de Jéssica. Buscam assim, no volume, denunciar a ligação do esquema de notícias falsas com políticos de esquerda, coisa que uma matéria de cinco minutos do Jornal Nacional resolveria, mas não vai acontecer. Só existem duas posições no caso: a acusatória, não oficial, e a neutra. Absolutamente ninguém se levantou para defender a Choquei, a Mynd8 ou Preta Gil. A própria cantora ainda não se pronunciou.

Para o público mais atento, no entanto, está claro que os combatedores de fake news são os beneficiários das intrigas de internet. Todos os grandes lançamentos de músicas ou filmes, nesta nova era da informação fast food, precisam gerar alguma polêmica, uma pauta-escândalo e, consequentemente, uma enxurrada de clickbaits, as matérias jornalísticas com títulos chamativos e que geram um artificial senso de urgência. É por isso que páginas como Choquei estão no centro das estratégias de marketing das agências que empresariam cantores, atores e outras celebridades da cultura pop.

Apesar da contradição que está sendo escancarada, dos defensores seletivos da verdade e do bom jornalismo, os amigos de Preta Gil sabem que a história toda pode se reverter a seu favor. Por isso estão bem quietinhos, esperando um desfecho favorável.

E parece que, de fato, a coisa está caminhando nessa direção. Uma nota compartilhada pela mãe de Jéssica, assinada por um advogado, faz o alerta: “diante da prematura partida de Jéssica, não podemos ignorar os riscos associados à propagação de informações falsas, desconexas e inverídicas, que têm prejudicado cotidianamente a vida de inúmeras pessoas e afetado a sociedade como um todo”.

Whindersson, que tem quase 60 milhões de seguidores no Instagram, foi mais longe e pediu a atuação do legislativo: “Quero iniciar um movimento para ver se contribui para a gente criar uma lei chamada Jéssica Vitória, para aprimorar a legislação brasileira com esse ‘jornalismo não oficial’ que é muito perigoso”.

Silvio Almeida, ministro de Direitos Humanos, sem muito alarde, citou o caso Jéssica para defender que “A regulação das redes sociais torna-se um imperativo civilizatório”.

Nenhuma dessas declarações cita a ligação da Choquei com empresários poderosos, mas a trata como mera página de internet de um anônimo qualquer, alimentando o pretexto para a perseguição e criminalização do cidadão comum, enquanto o verdadeiro financiamento do sistema organizado de desinformação permanece imune aos inquéritos policiais.

O esforço dos conservadores, muitos dos quais políticos e opinadores descendentes da onda olavete-bolsonarista, em denunciarem o esquema da oposição parece estar sendo, mais uma vez, absorvido dialeticamente no processo revolucionário de tomada do poder (esqueçam da luta armada, porque a agenda progressista está avançando apenas com a força da caneta, primeiro nos discursos, depois nos instrumentos jurídicos de controle da vida pública e, cada vez mais, privada). Eles são tão afoitos em querer fazer parte do fluxo de jornalismo de denúncia que nunca atingem o topo da pirâmide.

No caso da Choquei, por exemplo, o rosto estampado nas postagens da campanha de cancelamento da página foi o de Fátima Pissarra, não o de Preta Gil, o que já desvincula, na imaginação do público, a origem do caso como vinda do próprio mundo artístico. Alguns chegaram a publicar a imagem de Fátima com um nível bastante aumentado de sombreamento, ressaltando os fortes traços do seu rosto, o contraste da pele morena com os cabelos loiros, fazendo dela uma figura exótica e assustadora.

Até o documentário de Daniel Penin, a tentativa mais bem-sucedida de denunciar os verdadeiros envolvidos no esquema de fofocas da Choquei, colocou Fátima na capa e no epicentro do imbróglio todo, apenas porque, no site oficial da Mynd8, é ela quem consta como CEO da empresa.

O vídeo de Penin amparou-se em pelo menos duas reportagens da Revista Oeste sobre a indústria multimilionária de influenciadores, expondo inclusive os contratos da agência com os governos Temer e Dilma. De fato o nome de Preta Gil está nas matérias, junto com Luísa Sonza, Pabllo Vittar, Cléo Pires, Bela Gil, Deolane Bezerra, Lexa, Gil do Vigor e outros diversos influenciadores agenciados pela Mynd8, mas ninguém se deu ao trabalho de esmiuçar a simbiose entre entretenimento e política na cultura mainstream brasileira.

Há anos Preta Gil não emplaca uma música de sucesso nas rádios. Mesmo no “auge” de sua carreira, lá pelos anos de 2010, não fazia shows para públicos com mais três mil pessoas. Ainda assim, o nome da filha de Gilberto Gil permanece nos holofotes, por suas participações no Carnaval, por frequentemente subir no palco dos shows de Ivete Sangalo, por frequentar a casa de Angélica e Luciano Huck, pela traição do ex-marido, por assumir sua bissexualidade, enfim, por qualquer coisa que diga ou faça, ainda que não desperte o interesse geral.

Por que o duvidoso sucesso de Preta Gil nunca despertou a curiosidade da militância conservadora? Nem mesmo agora, após a morte de Jéssica Vitória.

Talvez por considerarem óbvia demais sua posição política, esquecem de averiguar a sua atuação na política, que não se dá na declaração de voto em ano eleitoral, mas nos encontros informais, casuais, amigáveis, como os recitais promovidos por Caetano Veloso e Paula Lavigne em seu apartamento, em Salvador (o último desses encontros, inclusive, aconteceu há dois dias, contando com a participação de Preta Gil e artistas da nova geração como Marina Sena e Bella Campos, além do cantor evangélico Kleber Lucas. Já denunciei este QG esquerdista no artigo https://revistaesmeril.com.br/israel-simoes-os-idiotas-vao-de-taxi/).

Porque a tal direita brasileira insiste em empreender, como guerra cultural, apenas o discurso repetitivo em torno de pautas como aborto e ideologia de gênero, a indústria cultural permanece forjando a mentalidade corrente, utilizando a forma mais antiga e popular de influenciar o pensamento alheio: fofoca. Os conservadores que se valem do mesmo falatório de esquina, da pauta do dia, para impulsionar suas carreiras, seguidores e likes, não estão batalhando por território, mas assumindo para si mesmos o lugar de massa de manobra.

Tudo indica que a máquina de desinformação progressista perderá um de seus tentáculos com o cancelamento da Choquei, mas rapidinho ele se reconstituirá. Pois a audiência revolucionária compra a mentira em troca de poder, enquanto a conservadora parece se contentar com meias verdades, provisórias e incompletas.

Mais uma vez, portanto, é preciso dizer: o Professor Olavo tem razão.

Os que alimentam o escândalo sobre imoralidades específicas fecham os olhos para a indústria do escândalo geral e permanente. Lutam contra o mal, mas não lutam contra a confusão, contribuindo para a confusão entre o bem e o mal.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

1 COMENTÁRIO

  1. “Lutam contra o mal, mas não lutam contra a confusão, contribuindo para a confusão entre o bem e o mal.”

    ¡QUE FRASE!

    Precisas fazer uma versão resumida deste texto, Israel.

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