ISRAEL SIMÕES | O testemunho precede o argumento

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

A primeira escritora brasileira a ingressar na Academia Brasileira de Letras e primeira mulher galardoada com o prêmio Camões, reconhecimento da maior honra na literatura nacional. Esta é uma parte do currículo de Raquel de Queiroz, que publicou mais de duas mil crônicas, diversas peças de teatro, livros infantis, contos, memórias, um livro de poesia póstumo, além dos clássicos literários O Quinze, As Três Marias e Memorial de Maria Moura, em muito inspirados nas agruras do povo do sertão cearense, terra de seus familiares. É inegável que Raquel possua talento para a escrita e, consequentemente, uma personalidade digna de observação. Não importa aqui sua participação na implantação do Partido Comunista Brasileiro no Nordeste ou seu apoio à instauração do regime militar de 1964. Entre os que se dedicaram à literatura neste solo, ela obteve o mérito.

Para o jornalista Caio Fernando Abreu, no entanto, importam menos as obras acabadas do que os discursos emergentes. Entrevistando Raquel de Queiroz no programa Roda Vida, no ano de 1991, ele afirmou: “…mas eu estou me sentindo extremamente constrangido de render homenagem a um tipo de ideologia que eu, profundamente, desprezo”, encarando a escritora como se ela estivesse no banco dos réus só porque ela soltou umas palavrinhas elogiosas aos militares do primeiro governo do regime. Acabou passando a vergonha de ser corrigido pelo apresentador Jorge Escostenguy, que o colocou em seu devido lugar: “você tem que fazer perguntas e não render homenagens. A entrevistada é a escritora Raquel de Queiroz”.

Contaminado pelo ideologismo que em tudo só enxerga ideologia, ao ponto de desumanizar o interlocutor, transmutando-o em mera ideia abstrata, Caio só poderia mesmo manifestar o seu total repúdio, bem no estilo pitizento, como se encarnasse, matematicamente, o puro antagonismo. Passou o resto da entrevista de cara amarrada, fingindo escrever algo com a caneta, porque era capaz de dialogar com narrativas, mas não com a mulher de carne e osso sentada bem à sua frente.

À exemplo de seu pai intelectual Karl Marx, exímio redutor da experiência humana a “ismos”, todo esquerdista tem essa tendência viciosa de sair pendurando crachás no pescoço dos outros, para deixar bem claro, aos seus olhos, quem é o joio e quem é o trigo.

E os conservadores da nossa época não têm agido muito diferente.

Defenestrando as universidades públicas, os cursos de humanas, os artistas, os médicos, os novos intelectuais, filósofos, jornalistas e todos os demais integrantes das elites opinadoras por seu “esquerdismo”, a direita brasileira tem a certeza de que está realizando uma gloriosa missão: a de perpetuar a intolerância zelosa do Prof. Olavo de Carvalho sobre as falácias camufladas em senso crítico.

Ora, mas se Olavo podia apontar o dedo a toda esta imbecilidade coletiva brasileira, é porque ele já havia dialogado de dentro, cara a cara, nos mesmos termos históricos e científicos rigorosos dos seus adversários. Não era um nojinho afetado e trapaceiro sua falta de moderação na defesa da verdade, mas a convicção real de quem investigou diferentes hipóteses e abriu espaço ao contraditório. Bem diferente dos caçadores de esquerdistas que acumulam milhões de visualizações no YouTube e cargos públicos em Brasília.

Se não colocarmos nossos melhores esforços na aquisição da erudição e da eloquência que nos posiciona acima dos que preenchem as prateleiras das livrarias, permaneceremos contrapondo o texto com mero discurso inflamado e oco, que aos olhos dos jovens universitários só poderá parecer inveja.

E com razão. Pois há mais ordem e clareza na confusão do criticismo foucaultiano, no fatalismo de Nietzsche, no racionalismo weberiano, do que no pronunciamento político fácil dos trios elétricos na Avenida Paulista.

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