ISRAEL SIMÕES | Nota ao leitor: minhas últimas palavras sobre The Chosen

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Não era minha intenção passar o tempo da Páscoa falando de The Chosen, mas parece que coube a mim jogar luz sobre um problema urgente, um transtorno de personalidade intrinsicamente moderno e já bastante alastrado das elites às camadas populares: trata-se da centralidade da experiência particular do eu no lugar da ordem da realidade. Cada um fala por si e ninguém se entende, porque as opiniões são formadas na borda da epiderme, onde os pêlos sobem, e registradas pela linguagem escrita na velocidade com que o dedo polegar aciona as letras do teclado, sem qualquer filtro da razão.

Esta geração se tornou refém de um pragmatismo grosso, da superficialidade da experiência intelectual e religiosa, do desprezo pela sabedoria e dos projetos urgentes para resolver os problemas financeiros, o que gera um certo desespero para ter razão em qualquer coisa, por mínima que seja, confortando o indivíduo de sua crônica indolência e sujeição à burocracia. Basta surgir um espaço aparentemente livre e estimulante, como um campo de comentários de um artigo despretensioso, que logo surgem uns ansiosos acusando-me do que eles mesmos praticam, só para suscitar um debate e dar algum proveito as suas glândulas adrenais.  

Minha última coluna na Revista ESMERIL, “The Chosen: o buraco é mais embaixo”, recebeu uma enxurrada de testemunhos de experiências comoventes com a série americana, contrapondo meus argumentos com depoimentos e lágrimas, dando assim mais uma prova de que estou denunciando um fenômeno, de fato, preocupante: tomar o sentimento pessoal como a medida mais confiável da apreensão dos significados.

Tudo nessa vida moderna virou uma histeria abrupta, que não cria espaço para a percepção de quem o outro é e para o raciocínio a respeito do que ele está falando.

Em nenhum momento emiti uma sentença moral sobre The Chosen como “presta”, “não presta”, “assistam”, “não assistam”. Apenas alertei sobre a importância de se preservar o SENSO DAS PROPORÇÕES e de não criarmos a ilusão de um novo avivamento, individual ou coletivo, em torno de mais um produto da indústria americana do entretenimento feito, precisamente, nos limites de cristianismo permitidos por esta mesma indústria.

Que as pessoas pensem estar consumindo The Chosen blindadas de possíveis influências negativas da representação de Jonathan Roumie sobre o seu imaginário a respeito do Nosso Senhor Jesus Cristo, de novo: é prova de que minha denúncia procede. É uma prepotência monstruosa achar que, por umas aulinhas de discipulado de igreja e cursos de teologia fragmentada internet à fora, o sujeito saiba exatamente o que absorver e o que filtrar da cultura, com todos os seus exercícios dialéticos e mecanismos sofisticados de manipulação psicológica.

No fim das contas o telespectador aceita o Jesus da Netflix por inteiro, esta é a verdade. E é justamente esta pretensão da série que me incomoda: a de apresentar uma pessoa de Cristo compreensível e inteligível, com quem podemos nos relacionar espontaneamente, sem mistérios, sem angústias ou receios, porque tudo nele é de fácil acesso, simpático, familiar. Um Jesus para todos, nas palavras do próprio diretor da série, Dallas Jenkins.

Não sou contra representações artísticas de Jesus Cristo, desde que a arte faça uso dos seus recursos estéticos simbólicos, alicerçada na linguagem poética, que desperta a imaginação humana e a transporta para lugares desconhecidos da realidade, onde habita a mística inescrutável da natureza única e eterna do Verbo.

The Chosen vai na via oposta, ambicionando apresentar uma unidade de Jesus com início, meio e fim, bem fácil de gostar e levar para casa, como que embalado em garrafa pet.

A única forma viável de consumir The Chosen é a mesma que recomendo para qualquer produto cultural de massa: prevenindo-se do vício, do viés de confirmação, preservando a inteligência e os gostos mais elaborados.

Mas façam como bem entenderem. Não estou vendendo conselho, dou de graça. Comam suas pipocas, vão ao cinema com suas fantasias de cetim e assistam The Chosen quantas vezes suas paixões e afetos demandarem.

Preservo-me no direito de considerar todo este frenesi o sintoma de uma patologia do espírito e as manifestações dos seus adeptos mais uma prova de que a moléstia nasce no sistema límbico e ataca as áreas corticais terciárias.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2024

23 COMENTÁRIOS

  1. Que não conhece a história das Tâmaras? o ditado diz: “Quem planta tâmaras, não as come”. Isso porque elas, naturalmente, levam cerca de 80 a 100 anos para produzir seus primeiros frutos. Eu acompanhei toda a série e, logo no início dela (vale à pena voltar para ler e escutar) diz que foi produzida em cima de estudos feitos e relatado, havendo inclusive uma simbologia teológica fictícia nem sempre condizendo com a verdadeira realidade. Sou Cristão e defendo a minha religião não me desfazendo das demais, mesmo porque, todas elas partem de um mesmo princípio… “Deus é o criador” PONTO…. O fato é que essa série trouxe à tona a espiritualidade adormecida em milhares de pessoas por todo o mundo e, se essa era a ideia dos produtores, parabéns, conseguiram alcançar o objetivo com folga mas, se não era esse o objetivo, que dêem o Oscar a eles. As problemáticas que vivemos hoje, e que destrói a religiosidade humana, são os propriamente ditos formadores de opinião abruptos à condição de distorcer diversos assuntos, nesse caso propriamente ditos, essa sistemática pandêmica chamada “The Chosen”. As “Tamareiras” foram plantadas porém, não levou seus 80 anos para darem seus frutos.

  2. Bom, agora vc deu a carteira da intelectualidade correta e muito aprofundada. Quem somos nós, donas de casa, dentistas, professores menores, comerciantes, contadores, para julgar a profundidade que a verdadeira religiosidade exige.
    Vou te dizer que, se eu pudesse , ouviria canto gregoriano, missa em latim e leria Santo Agostinho todos os dias, mas não dá. Tem dia que só dá pra um ” Pai Nosso” , mas é sincero. Acho que a série em questão vem ao encontro dessa simplicidade . É o Jesus “pobre” , mas sincero.

  3. A mentira mas perigosa e destrutiva é aquela que se confunde com a verdade. Os demônios sabem que uma oposição direta contra a Igreja, não a destrói e sim a fortalece. Pequenas mentiras contaminam e minam a fé já tão debilitada.

  4. Assisto como assisto qualquer filme, série ou documentário. Desde o início a série se propôs a ter licença poética, não afirmou que tudo era verdade portanto ao menos para minha fé não tem riscos, eu sei o que é a Verdade das Escrituras e sei o que é cinema.

  5. Exatamente assim que me senti assistindo a série. Pra início ela se dispõe a ser ecumênica, daí já vem o problema de desrespeito à real fé cristã. Ela diverte, ok. Mas e os princípios, os dogmas, as liturgias e a sacramentos, as sagradas escrituras …. Cadê a reverência a tudo isso que está nas alturas de qq produção estética? Por favor, ter uma cena com a imaculada Virgem Maria em trabalho de parto com o Santo José, negro, assistindo??? Isso é mais do que uma heresia. E as pessoas estão consumindo tudo como normal, é assim mesmo e tal …. É isso, senso de proporções perdeu o senso!!

    • Uai, mas a virgem Maria deu a luz, e para isso a mulher passa por trabalho de parto. E qual o problema de um José negro? Realmente vc ainda não conhece a Jesus.

    • ‭Deixo o conselho de alguém que conhece Jesus de perto

      Filipenses 1:15-18
      [15] É verdade que alguns pregam Cristo por inveja e rivalidade, mas outros o fazem de boa vontade. [16] Estes o fazem por amor, sabendo que aqui me encontro para a defesa do evangelho. [17] Aqueles pregam Cristo por ambição egoísta, sem sinceridade, pensando que me podem causar sofrimento enquanto estou preso. [18] Mas que importa? O importante é que de qualquer forma, seja por motivos falsos ou verdadeiros, Cristo está sendo pregado, e por isso me alegro. De fato, continuarei a alegrar-me,

      se em toda a história alguém me disser que uma pessoa entregou a sua vida para Cristo
      Digo sem medo
      Valeu cada episódio

  6. Não sei se sou capaz de falar apropriadamente dessa questão, mas quem poderia? Caberia aos bons catequistas orientar os paroquianos, aos jovens e pais principalmente.
    De minha parte, enquanto adulta e segura na fé, não vi problema na série, até as muitas licenças poéticas como um José negro e um Mateus indiano. Acho aceitável que o cinema hoje às vezes deixe de lado a verossimilhança étnica.
    Mas vou ouvir e pensar mais a respeito dessa série.
    Uma coisa em que insisto: não se deve falar em “consumo” para o uso de produtos culturais — ainda que sejam produtos e que haja uma economia da cultura. Consumo se refere a coisas que se extinguem, como víveres, suprimentos, carros etc. Uma obra cultural não se consome, se aprecia, se lê, assiste etc.

    • O consumir tem vários usos, inclusive na linguagem figurada. Ex: consumiu-se de amor elevado. Consumir a arte, usufruir até a última gota, extrair seu âmago…. E por aí vai. Vc pode não gostar do termo mas é plenamente oportuno o uso. Além do que, a arte também é um produto. Não físico daqueles que vc pega nas gôndolas.

  7. Amei seus textos. Esses dias estava falando exatamente sobre isso com minha filha. As pessoas assitem essa série como se isso substituísse o estudo da Palavra e a busca em se conhecer profundamente e verdadeiramente a figura de Jesus. Não conseguem separar o que é entretenimento do que é real. Basta falar algo que destoa do que a maioria pensa que já dói, ofende e, nesse contexto, comete-se um sacrilégio.
    Detalhe: nunca assisti The Chosen

  8. Realmente deu pra sentir a dor nos corações após a última coluna kkkkkk só vim aqui comentar e deixar meus parabéns pela análise indefectível do primeiro texto e da profundidade cirúrgica deste segundo.
    Gostaria de levantar uma questão bastante citada pela turminha defensora: Eles dizem que _mesmo a série não trazendo profundidade na figura de Jesus, acabou sendo uma forma de milhares ou até milhões de pessoas se voltarem à igreja. Isso é verdade, é melhor as pessoas se voltarem à Jesus mesmo que através deste Jesus pop, do que não se voltarem.
    Gostaria de uma análise sua sobre esta afirmação. Obrigado!

  9. Quando se toca nas paixões, no gosto particular, é como se tocasse na raíz de um dente sem anestesia. As pobres almas não suportam críticas porque já estão viciadas, escravizadas.

    O que diz, muito bem, é o óbvio. Mas com crianças não se ensina física quântica, se diz o óbvio. E veja a guerra por dizer o óbvio.

  10. Belíssimo e sucinto texto. Também não pude deixar de achar interessante o fenômeno dos que criticam representações artísticas de Cristo ou de elementos divinos, mas, por uma representação artística que em vários momentos distancia do que a tradição e as próprias escrituras ensinam sobre Cristo, se comovem e atribuem a essa mesma representação seus próprios avivamentos e conversões.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor