ISRAEL SIMÕES | Os idiotas vão de táxi

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

A apresentadora Angélica está completando 50 anos de idade e, para comemorar a data, decidiu entregar ao público brasileiro mais um produto de entretenimento do mais alto nível. Trata-se do programa Angélica: 50 e Tanto, uma rodinha de bate-papo somente com mulheres, somente com famosas, no sofá da casa dela, para ficar bem intimista. Se fosse um encontro pessoal entre amigas eu não teria absolutamente nada a ver com isso, mas que o chazinho da tarde vire programa da GNT, classificado pelo Google como documentário, me obriga a refletir para onde anda a cultura mainstream brasileira. Sem muito criticismo, apenas por curiosidade.

Logo no primeiro vídeo que o Instagram me recomendou estava a cantora Anitta “dando em cima” do filho mais velho de Angélica, de 18 anos. Disse que queria casar com ele e leva-lo para o meio do mato, mas…enfim. Tentei não ser implicante. Lembro das minhas tias fazerem a mesma brincadeira (não com o mesmo linguajar chulo, claro) me empurrando para cima de primas mais velhas que só riam da minha cara de pirralho deslumbrado.

O problema é que, para um programa de TV, o momento não chega a ser engraçado, ou interessante, na verdade não chega a ser nada. Mas o algoritmo se empolgou tanto em achar alguém aparentemente interessado naquela água de salsicha que me recomendou um segundo vídeo da mesma atração.

Nele estavam Angélica, Ivete Sangalo e Carolina Dieckmann ouvindo a atriz Giovanna Ewbank contar como foi difícil lidar com a traição do marido, não pelo ato dele em si, mas pelo julgamento das pessoas (!) que achavam que eles iriam se separar. Para Giovanna aquela crise no casamento se deu porque Bruno Gagliasso era muito jovem (apenas 29 anos…) e que, graças a Deus, eles foram muito sábios em seguir o coração e manter a relação depois daquela descoberta que “as pessoas” consideravam decepcionante.

Ao que Ivete Sangalo, com ares de indignação, emendou: “e as pessoas não sabem absolutamente nada! Não sabem o que levou àquilo. E outra coisa, a liberdade de você decidir se está com aquela pessoa ou não, não é de domínio público”.

Por um minuto parei e ponderei se eu estava realmente entendendo certo: as pessoas estão erradas por julgar uma traição como traição? É isso mesmo? As queridinhas famosas que vivem divulgando sua vida pessoal na internet estão revoltadas porque o povão, no mais simples bom senso, se solidarizou com uma mulher traída?

Sim, a audiência está errada, elas estão certas e vão nos ensinar o certo e o errado do sofá da casa do Luciano Huck, onde já se sentaram estrelas internacionais como Demi Moore, Matthew McConaughey, Bono Vox e até Madonna.

Percebi que minha intuição não falhou e que eu estava testemunhando um fato digno de reflexão. Os trechos das conversas de Angélica com suas convidadas estão em todos os sites de notícias, que forçam uma repercussão das banalidades ali ditas como grandes revelações do mundo das estrelas. Aliás, os episódios da série não ficaram apenas na TV fechada, mas foram incluídos na grade do programa Fantástico, a maior audiência das noites de domingo.

Acompanho os projetos de Huck e Angélica desde os tempos em que o apresentador alimentou a ideia de uma pré-candidatura à presidência da república. Ele desistiu para assumir o programa do Faustão e declarou à época: “nunca lancei uma candidatura. Isso não quer dizer que eu estou fora do debate público. Poder, a partir de 2022, fazer um programa popular, porém, com uma mensagem positiva de esperança (…) eu vejo esse desafio como o mais importante da minha carreira e vou dedicar cada dia e minuto para que seja um espelho da nossa sociedade, do que a gente tem de bom”.

Não sei se Huck tem acesso ao YouTube, mas outro dia sua esposa, batendo papo com a mesma Giovanna Ewbank em um podcast, opinou que a atriz deveria ganhar um “vale night” do marido para transar com outro homem, já que ela teria tido poucas experiências sexuais antes do casamento. Ewbank não só concordou como disse ter sido trouxa de ter ido para a cama com apenas cinco homens ao longo da vida, e de nunca ter traído nenhum deles.

Percebam que a pauta é minar a ideia de família tradicional, mesmo Huck e Angélica ostentando uma típica estrutura familiar conservadora, com direito a fotos natalinas e roupas de gala bem ao estilo homens-de-terno, mulheres-de-vestido. É o bom e velho “american way of life para mim, revolução sexual para vocês”.  

A consciência de que a verdadeira guerra de narrativas não se dá em Brasília, mas nos movimentos culturais e na apropriação dos discursos públicos, mobilizou o casal global a se envolver com os bastidores da militância política. Não à toa Angélica colocou ao lado de Anitta, Sandy, Marina Ruy Barbosa e Maisa Silva, artistas com enorme influência sobre a nova geração, ninguém mais ninguém menos do que Paula Lavigne, esposa de Caetano Veloso, que desde o impeachment de Dilma vem liderando a articulação entre artistas e políticos do alto escalão. Ela já reuniu em seu apartamento, no mesmíssimo estilo roda de conversa, figuras como Alessandro Molon, Randolfe Rodrigues, Marina Silva, Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Joaquim Barbosa e artistas como Wagner Moura, Letícia Sabatella e Gloria Pires.

Paula sustenta uma relação com Caetano Veloso que já dura mais de 20 anos e que gerou dois filhos. Houve uma separação entre 2004 e 2016 mas, segundo ela, “O que aconteceu com a gente foi que a separação não deu certo”.

Ou seja, os esfaceladores de famílias desejam chegar ao poder. Casados. Com filhos inclusive. Usufruindo de uma massa fragmentada de mães solo, de homens pendurados em pensões, de mulheres divididas entre trabalho e maternidade e de jovens solteiros perdidos na imoralidade. Por que? Está óbvio: eles querem mais poder.

Porque a capacidade de impor a sua vontade sobre os outros depende da diferença de recursos que você tem sobre eles e da pouca possibilidade de resistência de quem está abaixo. Quanto mais confuso o subordinado, mais necessidade ele tem de ser guiado por seu superior. Daí a desorientação moral ser a base da agenda cultural moderna, levando as almas simplórias a se enroscarem em problemas corriqueiros cada vez mais insolúveis, da discussão na mesa de jantar aos processos de guarda e divisão patrimonial.

Se tem uma certeza que todo brasileiro pode ter é a de que não chegará aos 50 anos de idade morando em uma mansão, casado, bem-sucedido, cercado de filhos e amigos ricos, com o direito de opinar sobre tudo quanto é assunto e ser ouvido, se continuar babando ovo nesse tipo de gente fofa, beautiful, bem-intencionada, cuja única vocação é alargar o abismo para o qual a elite progressista está nos conduzindo à força.

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