BRUNA TORLAY丨O sábio liberto e o prometeu acorrentado

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Sobre as vidas de São Nectário e Robert Oppenheimer

Quando Oppenheimer entrou em cartaz, fiquei curiosa para ver o filme, mas precisei ter paciência e esperar até que pudesse assistir em casa. Essa história de passar 3 horas numa sala de cinema não funciona muito bem para quem possui filho de 3 anos. Acabei vendo o filme no primeiro dia desse ano que começa, semanas após ter assistido a Homem de fé, sobre a vida de São Nectário. Sequência providencial.

Muito se falou a respeito de Oppenheimer, e se falou bem. O filme é realmente ótimo. Não por acaso levou prêmio de melhor direção e melhor atuação (principal e coadjuvante) no globo de ouro transmitido ontem. Que temos ali? Um homem especificamente brilhante, no sentido de estar longe da sabedoria libertadora, típica de homens brilhantes por inteiro. Explico.

Robert investiga o comportamento da natureza da perspectiva atômica, mas precisou implodir internamente, sentimentalmente, até perceber que fizera papel de tolo. Foi capaz de administrar um grupo de mentes aguçadas para criar as primeiras armas nucleares, de imbatível poder dissuasivo, mas via sem clareza a relação do Estado moderno com a alma humana. Nesse sentido, assim como produziu um instrumento, viu sua pessoa ser reduzida a outro. Apesar das condecorações recebidas ao longo da vida, seu feito foi mais negativo que positivo, uma vez que ampliar o poder dos Estados, ao ensiná-los a produzir bombas de capacidade destrutiva inédita, é reduzir a luz no mundo e arrancar a muitos inocentes o gosto da vida. Não por acaso, o ponto forte do filme é sua capacidade de mostrar um homem dividido entre o deslumbre com o alcance da própria inteligência e uma consciência atormentada pelos efeitos mortalmente devastadores do objeto que ela trouxe à tona; o contentamento com seus feitos políticos e a percepção de que, na politicalha rotineira, vale mesmo é destruir qualquer um pelo poder, sendo a verdade a última a entrar em cena – se é que acha ocasião de comparecer.

Oppenheimer é uma aula de política moderna, de ciência moderna, de moralidade moderna – esta última, constrita à dor privada, obrigada a se ocultar sob a dissimulação de um falso contentamento. A explosão da bomba atômica é impressionante pela magnitude, e lastimável pelos efeitos. Mais ou menos como algumas metafísicas e ideologias modernas: sentia-se um deslumbre com a possibilidade de tocar o perfeito nesta vida, e apostou-se em tentar – sem saber exatamente se daria certo. A aposta foi alta e o preço que os homens pagaram, ainda mais. A tragédia moderna é realmente a repetição incessante do mito de Prometeu. Mas muitos são os Prometeus, e diversas as formas de atear fogo ao ar que respiramos. Oppenheimer sintetiza-os de forma magnífica, o que o diretor Christopher Nolan soube explorar com maestria.

O mundo de São Nectário é outra história. Literalmente. Pois ele é martirizado sem pausa ao longo da vida, mas em virtude de uma superioridade espiritual que causava inveja a almas sedentas por um lugar cabível apenas ao santo, mas ao qual não apenas jamais reivindicou, como também rezou para não receber: Patriarca da igreja ortodoxa grega. Escreveu, educou e orientou aspirantes à vida religiosa, sem ter nacionalidade, no auge do nacionalismo europeu (virada do século XIX para o XX), portanto, destituído da segurança mínima para desempenhar suas atividades. São Nectário era admirado por onde passava, por educar pelo exemplo e inspirar pela alma santa. Enquanto isso, seus pares, atrelados demais ao tempo, fizeram-no instrumento e agiram de forma a fragilizar seus empreendimentos mais significativos.

O filme se passa entre o Egito e a Grécia. O santo nasce grego numa cidade que, enquanto servia à Igreja Ortodoxa no Egito, foi anexada ao antigo Império Otomano, numa região hoje pertencente à moderna Turquia. Por isso, não tinha nação. E sem ter nação, ao voltar à Grécia depois de ter sido expulso do Egito por colegas que temiam vê-lo se tornar patriarca, cargo de poder ao qual aspiravam para si mesmos; ao voltar à Grécia, já não era grego. Sem possuir um documento comprovando seu vínculo com o Estado, não podia ter paróquia. Dependia de “resolver seus conflitos com os colegas egípcios” para regularizar a situação — o impossível. São Nectário foi, então, obrigado a viver da generosidade de seus amigos, ou das pessoas que reconheciam seu mérito. Breve, da caridade. Paradoxalmente, é a falta de nacionalidade que intensifica a imitação de Cristo no santo. Nectário não respondia a nenhuma instância, senão à Igreja, por questões de circunstância; e isso o obrigava, por outro lado, a não se incumbir de assuntos administrativos, tampouco participar da “igreja do poder”. A providência divina o destinou a viver, por inteiro, a caridade, incorporando a “igreja da caridade” numa vida do início ao fim perturbada pela instabilidade política, inclusive a que afeta a “igreja do poder”. E daí?

Empurrado para “fora do tempo”, encarnou a universalidade própria ao cristianismo. A música tema do filme é o cântico Kyrie Eleison em uma versão do músico polonês Z. Preisner –música que, diga-se de passagem, levou-me ao filme, uma vez que adoro o compositor e, ao descobri-la em algum momento do ano passado, soube do filme. A cada passagem, vemos Nectário na solidão de sua cela implorando piedade enquanto o cântico toca ao fundo. Maior a adversidade, maior sua chance de imitar Cristo; buscar a Cruz e, finalmente, ter dela ciência. Toda a adversidade que lhe sucedeu, converteu-a em Via Crúcis pessoal, portanto. E a cada golpe sofrido, solicitava a Deus piedade pelos pecadores que lhe infligiram o mal. Reza por seus detratores pois sabe que a inclinação ao pecado ronda o ser-humano, que depende da piedade divina para não se perder.

O filme tem duas passagens especialmente marcantes. Sendo Nectário um homem de grande inteligência e autor de livros muito apreciados, a certa altura seu secretário lhe revela inconformismo com a escolha do santo em retirar-se ao convento que ajudou a construir – e  onde viveu na última década de vida, na austeridade, simplicidade e humildade mais genuínas. A objeção do secretário contrasta com a clareza do cristianismo na vida do santo, que não vivia para deslumbrar-se com suas fracas luzes, como fez Oppenheimer, mas para honrar a origem da verdade em si mesma.

A segunda passagem marcante também envolve seu leal secretário dos tempos de seminário. Nectário já muito doente, prestes a falecer, deitado sobre um leito de hospital, ouve do jovem que, tivesse sido tão perseguido, sua fé provavelmente não teria suportado; ao que Nectário lhe responde: “ai de mim, se minha fé dependesse dos homens”, ensinando-lhe uma última vez em que consiste o amor a Deus. Ainda sobre o leito, ouve um homem ao lado, em franco desespero por ver-se paraplégico, implorar que rezasse por ele. Nectário morre rogando pela cura da última pessoa que lhe pediu ajuda, e o filme termina com seu colega de quarto levantando da cama, atônito ao sentir os dedos se movendo de novo.

A cena final de Oppenheimer também é impecável. Sua esposa afirma que entendeu, afinal, porque ele suportara o processo injusto a que fora submetido: tolerou a humilhação na esperança de ser perdoado por ter posto sua inteligência a serviço de algo mau, uma arma com poder destrutivo inédito, da qual o mundo nunca esqueceu. Ela reitera que foi em vão, pois o mundo não haveria de perdoá-lo. Imbuído de um dos intelectos mais agudos do século XX, Robert Oppenheimer terminou a vida sem ter entendido dela o essencial, por mais grandioso que tenha sido o impacto de sua existência na terra e no tempo.

Vale recordar que, durante o recrutamento de físicos atômicos, justificava seu empenho em construir a bomba pelo perigo nazista e, sendo judeu, pelo horror ao que sucedia a seu povo. Enquanto isso, do outro lado do mundo e alguns anos antes, em Auschwitz, Edith Stein encarava como via de perdão a esse mesmo povo a câmara de gás, dando-se em martírio numa Via Crúcis feita de amor, não de imposição de ainda mais morte. Ela também era judia – mas ainda em vida, e ao buscar incessantemente a verdade, aprendeu a ser cristã.

Fato é que, sem o empenho de Oppenheimer em construir a bomba atômica, a segunda guerra poderia ter terminado sem armas nucleares. Mas o ímpeto de Prometeu, que roubou fogo aos deuses para conferir poder aos homens, ronda-nos de modo particularmente intenso de alguns séculos para cá, e sempre que não cuidamos de submeter a inteligência, mais aguda que seja, à boa vontade, ela própria será fonte de morte, e não de salvação legítima.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Se não fosse Oppenheimer seria algum outro. Já havia o conhecimento suficiente para a criação da bomba. Só restava descobri-la. No ambiente em que o mundo se encontrava, era algo inevitável.

    Oppenheimer descobriu que era preferível ter sido outro o autor.

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