ISRAEL SIMÕES | 200 milhões de legisladores

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Se tem uma coisa que o brasileiro gosta de fazer é cagar regra. Perdido no mar das jurisprudências de conveniência, imerso na cultura dos desesperos materiais e dos jogos de interesse os mais mesquinhos, sem um pai que preste, um professor que entenda ou um pregador que, de fato, proclame a sã doutrina, o cidadão busca, desesperadamente, a fonte confiável de princípios que lhe norteiem a vida.

E por que não confiar em si mesmo?

Se tudo em volta é caótico e imprevisível, nada mais natural do que ver, no conjunto das próprias opiniões, acumuladas na jornada de que é testemunha, a coisa mais próxima de uma ordem estável. Cada achismo é convertido, de imediato, em dogma, certo e indiscutível que, se encontra discordância, levará o sujeito às impaciências mais raivosas. “O que sei é lei”, ainda que ninguém concorde no que sabe.

De dogmático para legislador é um pulo. Sim, pois se estou convicto de que tomei nas mãos uma porção da realidade, como o profeta que recebe, do próprio Deus, as ordenanças que servirão de guia para o povo, nada mais justo do que converter a revelação em mandamento, pacificando a questão, evitando os equívocos. Não importa se a experiência originária foi a mais particular e subjetiva, se está entremeada pelos sentimentos mais sugestionáveis: o testemunho pessoal basta como argumento.

Foi assim que o filho do Faustão, cujo nome desconheço (e creio que a grande mídia também), mal o novo coração do pai dava as primeiras pulsadas, pegou um voo para Brasília de terno e gravata, cabelo lambido para trás, para pressionar deputados e senadores a alterarem a legislação brasileira de doação de órgãos. Agora o moço quer que todo mundo seja doador, não interessando a opinião da família, e quem pensa o contrário que registre em cartório antes de bater as botas.

Tecnicamente passaríamos da doação consentida para a doação presumida. Pela nova legislação o defunto vira propriedade do Estado, exceto se declarar por escrito e em documento oficial que deseja ser dono do próprio corpo.

Nem entro no mérito do tema em si; não é sobre transplantes e filas do SUS o assunto deste artigo.

O que me soa intragável é que cada brasileiro veja em si uma pauta, uma militância, uma plataforma de ideias louváveis, incapaz de presenciar um gesto decente sem cometer a indecência de transformá-lo em instrumento político contra as liberdades individuais.

Como se só coubesse Eu no centro do palco e todo o resto vira bailarinas sem nome e sem voz.

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