VITOR MARCOLIN | Apeirokalia

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Doença da alma

O maldito livro caíra no meu pé. Eu ia mesmo soltar um palavrão feiíssimo, mas me contive: estava em casa alheia. Só pude disfarçar a dor comentando qualquer coisa sobre o título, escrito em cirílico, que estampava a capa de couro do monstro de papel. O professor explicou, solidarizando-se com a minha desgraça, que o conteúdo do calhamaço versava sobre a Revolução Russa. Ele, porém, não tinha interesse em falar sobre os erros da Rússia. Convidou-me para um passeio no jardim da mansão, mas com uma condição — estranhíssima: “Deixe o celular aqui, se faz favor; se quiser, meta uma pistola no bolso, mas não entre no meu jardim com um celular. Por favor”. Eu estava em casa alheia. Aceitei a condição esboçando um sorriso de assentimento verdadeiro — acho que o velho professor percebeu. E fomos para o jardim.

“Há duas semanas, voltei dos Estados Unidos. Permaneci um mês na região nordeste daquele país. Lugar encantador. As casas lá são diferentes das casas brasileiras. Refiro-me à arquitetura, claro. Você já deve ter visto. Todo mundo viu. As casinhas americanas são verdadeiras obras de arte. Santo Deus!, como uma coisa dessas pode existir!?”. 

Veio o chá de erva mate. 

“Sabe, meu filho, enquanto estive lá, tive bastante tempo para refletir sobre a dimensão estética da vida americana. É como se aquela gente ainda não tivesse perdido a consciência da importância que a beleza tem sobre a vida comum. Eu sei que falando assim dou a impressão de estar fazendo propaganda barata. Mas não. A coisa é bastante real”. 

Segunda xícara de chá mate — a xícara era minúscula e o assunto começava a me interessar. 

“Os antigos gregos tinham um nome para um tipo de disfunção psicológica, uma doença da alma que atrapalhava a vida: Apeirokalia, a falta de experiência das coisas mais belas. O termo grego, meu filho, refere-se à falta de certas experiências que, no transcurso da vida, podem nos fazer despertar a ânsia pelo belo, pelo bem e pelo verdadeiro. Sem isso a vida é oca, insípida… e sem açúcar como este chá!” (O professor riu alto). 

Terceira xícara. E biscoitos amanteigados. Não sei precisamente o porquê, mas sempre tive preconceito contra biscoitos amanteigados; achava-os coisa fresca, aperitivo de burguês, firula dispensável. Mas não. Tenho de ser honesto: esses biscoitinhos são a coisa mais deliciosa que já provei. A erva mate só faz realçar o sabor dos quitutes. 

“Dentre os elementos que implicam o bem viver, se me permite usar essa linguagem, está a beleza presente na arquitetura — e que, por sua vez, implica a ordem urbana, a forma como as cidades são organizadas. Se você vive numa cidade feia ou, dizendo de modo mais condizente com a realidade brasileira, numa cidade que ficou feia, num bairro disforme, você corre perigo. O ser humano não foi criado para viver em chiqueiro. Não! Nós gostamos de ordem, gostamos de higiene, de harmonia, de beleza. Mais do que isso: nós precisamos de beleza para viver. Experimente pôr-se dentro de um bairro desprovido de sinalização, de iluminação; no qual a disposição das ruas não segue um padrão evidente. O que você acha que lhe vai suceder, meu filho? Sim!”.

Ele falava ao mesmo tempo em que bebericava o chá e mastigava os seus biscoitos amanteigados. Engasgou-se. As últimas palavras saíram indecifráveis. Consegui, no entanto, inteligir o “tiroteio”. Franzi a testa e fiz sinal negativo com a cabeça. Ele tossiu, ficou vermelho; completou a pequena xícara de chá e consumiu o seu conteúdo em dois goles generosos. Refez o gesto. Passou o guardanapo sobre os lábios com uma delicadeza que julguei exagerada e prosseguiu. 

“Desculpe. Eu disse que você vai ficar mais perdido que cego em tiroteio. Sem pontos de referência é isso que vai acontecer. Os sintomas dessa doença, a Apeirokalia, manifestam-se com maior intensidade em função do tempo; quanto mais tempo você viver sob os efeitos da fealdade, meu filho, mais ela se impregnará em você. Sua forma de ver o mundo e sua personalidade ficarão… cof! cof! cof! Desculpe! Feias, ficarão feias pela doença. Hoje, meu filho, há pessoas, há sociedades e países inteiros que vivem sob os efeitos da Apeirokalia. É triste, não é?”. 

Fiquei para o jantar. O professor tinha uma bela filha. Era madrugada quando cheguei em casa no meu bairro de subúrbio. Quanta verdade numa noite! 

***


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7 COMENTÁRIOS

  1. Muito bom, mas o exemplo é ruim.

    O vira-latismo ímplicito me incomoda bastante. A verdade é que os americanos sofrem dessa doença tanto quanto a gente.

  2. Muito interessante a maneira como o nobre articulista utiliza de sutil distinção entre os sentidos (dor, paladar, visão, audição) e a intelecção, por parte da alma, do Belo, do Bem e da Verdade, haja vista a inclinação do homem para a ordem e não para o caos.

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