ISRAEL SIMÕES丨O príncipe imortal

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

“Eu, William, Príncipe de Gales, prometo minha lealdade a você, e à fé, e à verdade que lhe darei, como seu vassalo de vida e membros. Que Deus me ajude.” Foram essas as palavras do príncipe William a seu pai, rei Charles III, antes de dar-lhe um beijo no rosto, no que podemos considerar o clímax da coroação na Abadia de Westminster, na última sexta-feira. Algumas filas de cadeiras atrás, seu irmão Harry, que abdicou de suas funções reais para viver uma vida tipicamente americana junto da esposa, Meghan Markle, fazia de tudo para aparentar a mais altiva superioridade, revivendo a briga entre irmãos que já é lendária na história e na literatura. Uma luta corpo a corpo por poder, herança e o amor do próprio pai.

Mas o que estava em jogo naquele momento não era apenas a sucessão do trono e sim a sobrevivência da tradição, para uma geração que vê o progressismo se apropriar da cultura alta, média e baixa.

Em tempos de exaltação das monarquias que ainda resistem, portanto, nada mais propício do que o tema do ateísmo para a edição deste mês da revista Esmeril. Sim, porque o descrente, o incrédulo é aquele que, primeiro, desistiu dos anseios de imortalidade, de cravar o seu nome na história apenas para conquistar a glória do presente. Ele se contenta com uma Torre de Babel, mesmo que ela mal-mal ultrapasse as nuvens.

Pela carência de um menino agitado que, de tantas travessuras, precisa retornar ao colo protetor da mãe, Harry resolveu comprar a briga da falecida Diana, romper com o legado de seus avós e ancestrais, abandonar o povo britânico e viver às custas de fofocas, vitimismo e pautas sociais clichês.

Como um Coringa que faz piada para esconder a frustração de não carregar uma capa, ele adentra na Abadia de Westminster e atravessa seu longo corredor com um sorriso no rosto e passos firmes, mesmo depois da traição de lançar um livro que expõe uma versão persecutória (um tanto fantasiosa, diga-se de passagem) da realeza contra a sua esposa. Cria assim uma espécie de déjà vu sobre o público, incitando-o a reviver a conturbada vida amorosa de seus pais, seu trágico fim, venerando a morta no lugar de servir aos vivos, virando as costas para a nação porque não consegue superar os seus próprios dramas pessoais.

O ateu rejeita Deus porque dobra os joelhos para fazer birra, chorando as mágoas de uma criança que não teve todas as suas vontades feitas, todas as perguntas respondidas.

Charles e William, por outro lado, ainda que associados ao projeto de modernização do Reino Unido, baixam a fronte e aceitam a cruz que lhes cabe. Afinal de contas, todo luxo que os cerca em nada alivia o peso do risco de ser a vergonha do seu próprio povo, caso metam os pés pelas mãos. Acredite, leitor: esta sujeição à ordem terrena é um degrau a mais para chegar aos céus.

Diferentemente da história do povo hebreu, portanto, pelo menos por hora, aqui não há estratagemas e golpes de sucessão.

À Charles, a coroa. Esta que será herdada por William.

E Harry que cozinhe seu próprio prato de lentilhas.

Direitos de imagem: Hugo Burnand/Reprodução/Instagram/@theroyalfamily

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2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente Israel! Confesso que imagino o Harry recebendo um Big Mac pelo IFood… Não deve ter aprendido a cozinhar as lentilhas de acordo com a tradição britânica.

    • O prato de lentilhas era uma referência à história bíblica de Jacó e Esaú. Nela o filho mais novo convence o primogênito a lhe conceder o seu direito de herança em troca de um prato de lentilhas. No caso de Harry, não há essa disputa. Ele não oferece o prato de lentilhas a seu irmão William, não compete o poder e a coroa. É um covarde, orgulhoso de sua posição de filho pródigo. De todo modo, bom saber que a figura de linguagem também evoca uma tradição gastronômica…

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