‘Marighella’ | A mentira redentora de Wagner Moura

Revista Mensal
Ian Maldonado
Ian Maldonadohttps://auroraprime.com.br/
Ian Maldonado é cineasta e documentarista, responsável pela produtora Aurora Entretenimento e sua plataforma de streaming, a Aurora Prime. Diretor de 'Lockdown: Uma História de Desinformação e Poder' e editor ou colorista de vários outros. Esgrimista de tolices nas horas vagas.

Se o filme não é ruim, também está longe de ser excelente e deve ser tratado como obra de ficção

Assisti ‘Marighella’, do Capitão Nascimento, e devo dizer que me surpreendi: é muito mais previsível e afetado do que pude imaginar e, apesar de muito bem produzido, com uma boa fotografia — apesar da irritante, eterna e incontrolável câmera subjetiva, supostamente descolada e presente em 110% dos filmes nacionais —, imagens de abertura e encerramento bonitas e uma boa atuação, sobretudo a de seu Jorge.

Poderia até dizer o contrário, só para espezinhar, e afirmar que tudo é muito ruim, mas não seria honesto, fazendo exatamente o que a esquerda mais adora: eclipsar qualquer avaliação objetiva com as próprias paixões políticas. O filme, que tem a digital de Wagner Moura, está recheado de “imprecisões históricas” e diálogos medianos, talvez como consequência de seu maniqueísmo exagerado.

O Delegado Lúcio, personagem de Bruno Gagliasso, parece o próprio mal encarnado e não tem construção alguma… O cara é simplesmente ruim! A impressão que fica é de que quase tudo aquilo já havia sido feito em filmes sobre o nazismo, o que seria uma representação no mínimo hiperbólica do período militar.

O regime militar também fez besteira? Evidente que sim. Embora o grosso da população gozasse de mais liberdade que hoje, aparentemente, era um governo desenvolvimentista, estatizante e estrategicamente burro, mas que surgiu exatamente como resposta a um pedido popular. Vale lembrar que a “luta armada” já existia no Brasil desde Luís Carlos Prestes, em meados de 1920 e 1930. Veja: o próprio governo militar não combateu ou perseguiu a guerrilha até 1966 — pouco mais de dois anos após assumirem o poder —, quando houve o atentado no aeroporto de Guararapes, no Recife.

Feitos os parênteses, voltemos à obra de Wagner Moura

Antes de ser lançado, o filme foi muito criticado pela escolha de Seu Jorge como Marighella, em virtude da óbvia diferença física — Carlos Marighella era filho de um italiano, Augusto, e uma negra, Maria Rita, mas está longe de se parecer com Seu Jorge (também não era branco, como alguns da direita insistem). Confesso que não me importei; afinal, o que é esse Marighella comparado à versão preta de Ana Bolena criada pelo Netflix? No fundo, Wagner Moura apenas seguiu uma tendência importada.

Entretanto, pelo apego à fidelidade histórica, confesso que, após assistir ao filme, me senti incomodado: Wagner trouxe para o contexto do regime militar e da guerrilha armada uma militância racial completamente anacrônica — não me parece, curiosamente, que os guerrilheiros da época sentiam-se incomodados com todo o racismo de Ernesto ”Che” Guevara. Desde a trilha sonora, com “Monólogo ao Pé do Ouvido”, de Chico Science, a um certo excesso de xingamentos racistas (”Corre, preto!”, “Seu preto de merda!”), o conflito é patente durante as 2h35min.

Por outro lado, me contentei por não terem rejeitado o apoio da teologia da libertação à esquerda, que foi bem representado no filme. Para quem tiver curiosidade, há, inclusive, uma entrevista no YouTube em que Lula, em meio a uma demonstração de absoluto desprezo pelo sujeito que lhe serve comida dentro do avião, fala sobre essa ajuda que todos receberam de parte da Igreja. Aliás, foi um fenômeno que se espalhou por toda América Latina; o próprio Perón, que pariu, de uma forma ou de outra, o Kirchnerismo que hoje impera na Argentina, trocava cartas com Juan Garcia Elorrio, diretor da revista Cristianismo y Revolución, a quem sempre se referia como “querido amigo” já na década de 60.

No entanto, uma mentira grotesca foi sustentada no filme: que “os americanos ajudaram no golpe de 64”. Sabe como isso surgiu? É simples: desinformação soviética. Ladislav Bittman, ex-diretor da STB — Serviço de Inteligência da Tchecoslováquia, que servia como uma espécie de sucursal da KGB —, conta num pequeno trecho de seu livro A KGB e a Desinformação Soviética como funcionou a Operação Thomas Mann — ou, ainda, Operação Toro:


Quando cheguei ao Brasil, a Operação Thomas Mann já estava completando a sua carreira. O objetivo da operação era provar que a política externa americana para com a América Latina havia mudado radicalmente desde a morte do Presidente John F. Kennedy. Queríamos sublinhar a política americana de exploração econômica e interferência nas condições internas dos países latino-americanos. De acordo com a teoria forjada, o responsável por essa nova diretriz era o Secretário-Adjunto de Estado Thomas A. Mann. Queríamos criar a ilusão de que os Estados Unidos estavam impondo uma pressão econômica injusta aos países sul-americanos com políticas que eram desfavoráveis para o investimento de capital privado americano. Também queríamos criar a impressão de que os EUA instavam a Organização dos Estados Americanos a tomar uma posição mais anticomunista, enquanto a CIA elaborava golpes contra os governos chileno, uruguaio, brasileiro, mexicano e cubano. A Operação Mann foi concebida de forma a alertar o público latinoamericano contra a nova e endurecida política americana e a estimular manifestações anti-americanas mais intensas e a cristalizar o posto da CIA como a notória perpetradora de intrigas antidemocráticas.

A Operação Mann fiava-se somente em canais de comunicação anônimos para disseminar documentações forjadas. A primeira forja, um comunicado de imprensa da Agência de Informações dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, continha os princípios fundamentais da “nova política externa americana”. A segunda forja foi uma série de boletins circulares publicados em nome duma organização fabulosa chamada “Comitê de Luta contra o Imperialismo lanque”. A missão patente dessa pseudo-organização era alertar a população da América Latina contra a centena de agentes da cia, do FBI e do Departamento de Defesa americano travestidos de diplomatas em atividade na região. Uma terceira farsa foi uma carta supostamente redigida por J. Edgar Hoover, diretor do FBI, para Thomas A. Brady, um agente do FBI. A carta atribuía ao FBI e à CIA a execução bem-sucedida do golpe brasileiro em abril de 1964. O comunicado de imprensa forjado da Agência de Informações dos Estados Unidos no Rio de Janeiro foi mimeografado e distribuído em meado do mês de fevereiro de 1964 em um envelope forjado da Agência para a imprensa brasileira e para alguns políticos brasileiros. Uma carta anexada ao comunicado e supostamente escrita por um funcionário local da Agência dizia que esse comunicado fora sido censurado pelo chefe da missão, por ser franco demais. Ele revelou que tentara reter muitas cópias e que ele as dera à imprensa brasileira porque estava convencido de que o público devia conhecer a verdade. Em conclusão, este escritor anônimo afirmava que devia permanecer anônimo para não perder seu emprego.

Em 27 de fevereiro de 1964, a forja apareceu na capa d’O Semanário brasileiro sob a manchete “Mann fixa ‘linha dura’ para os EUA: ‘Não somos camelôs para barganhar”, e um ataque antiamericano acompanhava o texto do comunicado de imprensa falso. Alguns dias depois, em 2 de março de 1964, Guerreiro Ramos, membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fez um discurso onde comentava a nova política atribuída a Thomas Mann e concluía que os Estados Unidos haviam obviamente regredido à linha-dura de John Foster Dulles após a morte do Presidente Kennedy 13 (Depois, Ramos admitiu que havia cometido um erro e que as declarações atribuídas a Mann eram baseadas num documento forjado.) Num pronunciamento publicado em 3 de março, o embaixador americano no Rio de Janeiro afirmou a oficiais brasileiros que Thomas Mann jamais propusera tais políticas e que a embaixada nunca publicara o tal comunicado.

Nos meses seguintes, a imprensa de esquerda da América Latina usou o nome de Thomas A. Mann como o símbolo vivo do imperialismo americano. Em 29 de abril de 1964, o semanário prócomunista mexicano Siempre publicou um artigo que fazia referência ao assim chamado Plano Thomas Mann contra a América Latina, e adicionou que o plano advogava pela derrubada dos governos do Chile, do Brasil, do Uruguai e de Cuba, bem como pelo isolamento do México durante 1964. Essas acusações foram repetidas pelo jornal uruguaio Época em 20 de maio. Duas semanas depois, o primeiro-secretário do Partido Comunista Uruguaio falou no parlamento, durante uma discussão a respeito da exportação de produtos uruguaios aos EUA, e acusou Thomas Mann de “cinicamente favorecer um coup d’Etat”. Quando a embaixada americana em Montevidéu, no dia seguinte, publicou um desmentido que rememorava que o assim chamado Plano Thomas Mann era falso, o órgão comunista El Popular respondeu no dia 5 de junho com um artigo eloquentemente intitulado “Mr. Mann: plano de guerrilha para toda a América Latina”. Até num período já mais tardio, em 16 de junho de 1965, o jornal mexicano El Día, de esquerda, publicou um anúncio de um quarto de página do “Comitê de Coordenação Nacional em Apoio à Revolução Cubana”. No artigo, dizia-se que, em 1964, Thomas Mann havia coordenado a Operação Isolação, concebida para derrubar Cuba da sua posição de líder da luta anti-imperialista na América Latina.

Como mencionado anteriormente, a segunda técnica usada nessa campanha de desinformação foi o uso de circulares e pronunciamentos emitidos em nome duma organização fictícia, o Comitê de Luta contra o Imperialismo lanque. A maior parte desses documentos identificava representantes americanos na América Latina como espiões, incluindo diplomatas, empresários e jornalistas.

— Ladislav Bittman, “A KGB e a Desinformação Soviética“, pg. 29

Além disso, há momentos em que o próprio filme se contradiz. Marighella nunca quis “democracia”; queria outra ditadura, com ele e seus amigos no poder. Em 1967 foi fundada a OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade), em Cuba, que foi a primeira tentativa de se criar o que hoje representa o Foro de São Paulo (criado por Lula e Fidel). Carlos Marighella estava lá e concedeu uma entrevista à Rádio Havana:


Como tenho uma posição divergente em relação à direção do Partido Comunista Brasileiro, pois sou partidário da luta de guerrilhas como caminho para solução dos problemas do nosso povo, creio que seria ridículo expulsar um revolucionários somente porque veio a Cuba trazer a solidariedade do povo brasileiro à revolução cubana e à Primeira Conferência de Solidariedade Latino-Americana. (…)

Somente agora, e depois que a revolução cubana conseguiu sua grande vitória, e se encaminhou pelo terreno da construção do socialismo no primeiro país da América-Latina, tornou-se possível congregar todos esses esforços, dos revolucionários de toda a América-Latina, como acontece agora nessa primeira Conferencia da Organização Latino-Americana de Solidariedade para enfrentar a estratégia global do imperialismo Norte-Americano. Espero que o movimento revolucionário brasileiro saberá compreender a importância dessa primeira Conferência Latino-Americana de Solidariedade e que se junte aos esforços que todos fazemos no sentido que, como disse o comandante Che Guevara, criar um, dois, três, muitos Vietnãs.”

— Carlos Marighella.

(Você pode conferir a entrevista inteira aqui)

Se Wagner Moura, num lampejo de consciência, impedisse que sua ideologia juvenil e assassina enturvasse seu talento, poderia ser um excelente diretor, além de um ator admirável e um militante medíocre. ‘Marighella’ não esconde as ações da ALN ou de seu protagonista — até porque não seria possível —, embora não cite em momento algum o macabro “Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano”, mas, naturalmente exagera na romantização de um criminoso idealista e sanguinário. O filme não é ruim — também não chega a ser excelente —, mas deve ser encarado apenas como obra de ficção.


Nossas relações sociais são limitadas, a maioria do tempo, a fofocar e criticar o comportamento das pessoas. Esta observação lentamente empurrou-me para o isolamento da chamada vida social. Meus dias se passam na solidão

— Ingmar Bergman

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