O Onirismo Audiovisual de ‘Duna’

Ian Maldonado
Ian Maldonadohttps://auroraprime.com.br/
Ian Maldonado é cineasta e documentarista, responsável pela produtora Aurora Entretenimento e sua plataforma de streaming, a Aurora Prime. Diretor de 'Lockdown: Uma História de Desinformação e Poder' e editor ou colorista de vários outros. Esgrimista de tolices nas horas vagas.

Duna está longe de ser uma história materialista: a preocupação com o legado familiar e as coisas da alma é a característica mais presente no filme

Tão logo tenha sido lançado Duna, novo longa de Denis Villeneuve, críticas acerca dessa adaptação do clássico homônimo de Frank Herbert tomaram conta da internet. De um lado, autoproclamados intelectuais modernos e quase sempre pernósticos; de outro, YouTubers nerdolas que consideram qualquer besteira com efeitos especiais um grande produto.

Eis o primeiro ponto que gostaria de estabelecer com os leitores, uma vez que sou novo por aqui e poucos devem me conhecer: longe de mim — bem longe! — querer bancar o crítico; tendo a não gostar deles, inclusive. Afinal, uma parcela considerável é tão cega quanto Carlos Amarilla, responsável pelo gosto amargo do rancor que carrego até hoje em virtude de um dos maiores crimes já cometidos contra o mundo futebolístico naquela fatídica Libertadores. Enfim… Estas serão apenas as impressões de alguém que ama cinema e tenta fazer dele seu ofício.

Não pretendo aqui comparar o filme à série literária. Além desse tipo de comparação ser injusta, não faz muito sentido, justamente por pressupor que aqueles que assistiram ao filme necessariamente tenham lido o clássico de Frank Herbert. São obras diferentes, que dispõem de ferramentas narrativas dissemelhantes e, por vezes, até mesmo públicos distintos. Sendo assim, tomo a liberdade de avaliar o filme pelo filme e só.

Uma parte do público ainda tem a versão de 1984, dirigida por David Lynch, muito presente na memória, naturalmente. Eu gosto daquele filme e acho engraçado o penteado estilo Johnny Rotten de algumas figuras da Casa Harkonnen, mas odeio admitir que esteja datado. A trilha feita por Toto é excelente e dá muito mais esse tom sci-fi que a nova, composta por Hans Zimmer. É infinitamente mais sombria, embora ambas sejam excelentes e contribuam demais na definição do mood das duas versões.

Feitas as devidas considerações, vamos ao que interessa

A fotografia de Duna (2021) é de Greig Fraser, que trabalhou em Rogue One: Uma História Star Wars (2016), Let me In (2010), Maria Madalena (2018), alguns episódios da primeira temporada de The Mandalorian (2019) e o próximo Batman — aquele com Robert Pattinson —, e casou perfeitamente com o estilo dos últimos trabalhos de Villeneuve — talvez em algum lugar entre Blade Runner 2049, fotografado pelo incomparável Roger Deakins, e A Chegada, de Bradford Young.

Créditos da Imagem | Divulgação

O que mais chama a atenção na cinematografia de Duna certamente são a paleta de cores e a tridimensionalidade das tomadas. Tudo é muito soft: iluminação difusa e soturna nas cenas internas, muita neblina nas cenas externas, o que ajuda a diferenciar bem formas, planos e proporções, e um esquema quase monocromático em algumas situações, que separa todos os ambientes e planetas onde a história se desenvolve.

Os tons de pele são extremamente sutis na maior parte do tempo, o que colabora com a temperança passada pelas personagens e a sobriedade da história — repare em Paul Atreides… O moleque é mais pálido que um nabo. Por essa frieza, inclusive, que acredito que tenham emulado uma arquitetura brutalista para alguns cenários.

Há também um contraste interessante: planos mais fechados durante todo o filme pretendem atrair a atenção para o aspecto psicológico das personagens; já outros enquadramentos, muito abertos, amplos, diminuem intencionalmente as pessoas em relação a um ambiente árido e desolador.

Apesar de Duna ser uma ficção científica densa e sombria — a versão de Villeneuve menos que a de Lynch, repito —, algumas cenas, sobretudo as experiências oníricas da personagem principal, são extremamente contemplativas. O povo Fremen têm forte ligação com a terra e a natureza — influência direta da cosmovisão de Frank Herbert, que via com preocupação a relação do homem com a natureza num nível mais filosófico e distante da histeria ambientalista moderna —, e a confiabilidade e estabilidade emocional que o sépia do planeta passa, mostra que ali é o verdadeiro lar do leguminoso Paul.

Não obstante a corrida frenética pelo spice — elemento alucinógeno que possibilita, dentre várias coisas, a viagem interestelar —, Duna está longe de ser uma história materialista: a preocupação com o legado familiar e as coisas da alma é a característica mais presente no filme e tanto fotografia como trilha apoiam essa concepção.

Algo que me deixou positivamente surpreso em relação ao filme foram os efeitos especiais. Acredite se quiser: são quase todos efeitos práticos, isto é, sem uso de computação gráfica. Sem CGI. Para a deformação das dunas, quando os vermes estão se aproximando, por exemplo, foi utilizado um dispositivo que alterna a frequência das vibrações por baixo da areia. O mesmo serve para aqueles ornitópteros em forma de libélula: eles existem e eram içados por guindastes com gimbals no set de filmagens.

Créditos da Imagem | Divulgação

Sempre tive receio de filmes com muito VFX, pois sinto que esses acabam sendo priorizados em detrimento da história em 99,9% das produções contemporâneas, o que virou uma especialidade dos filmes da Marvel, diga-se de passagem, que reduziu o cinema a espetáculos de luzinhas coloridas, excesso de CGI, montagem epilética e indecifrável e outros cacoetes hollywoodianos deprimentes dos últimos anos — o único que chega a ser quase razoável é Capitão América 2, e, antes que me perguntem: sim, sou um homem cheio de preconceitos, mas só porque todo preconceito é justificável no caso desses filmes… Mas isso é papo para outra hora.

Voltando a falar sobre a trilha sonora, Hans Zimmer usa e abusa do que é conhecido por Wall of Sound, como em quase todas suas composições: instrumentos e outros sons utilizados em uníssono como se estivessem numa câmara de eco. Resumidamente, é isso. No entanto, para essa trilha, segundo o próprio Hans Zimmer, Villeneuve lhe pediu que algum instrumento antigo reverberasse a todo instante, optando por irish whistles (pennywhistle), flautas de bambu indianas e outros instrumentos ancestrais — tudo misturado com guitarras distorcidas, vozes e sons de metais. É uma trilha tão exótica quanto o tom alaranjado de algumas cenas em Arrakis sugere. Pode parecer um pouco over para alguns por ser muito presente e sempre muito forte, e até concordo que poderia ser mais sutil, quem sabe?, mas que é boa, é.

Mesmo com os problemas gerados pela crise da covid-19, que impossibilitou Denis Villeneuve de trabalhar na sala de edição diretamente com o editor Joe Walker, o ritmo não foi afetado nem um pouco. A montagem substitui o voice over do filme de 1984 e assume uma espécie de foreshadowing com as visões e sonhos de Paul Atreides, que até pode deixar o filme um pouco mais previsível, porém com uma solução mais elegante que a versão de Lynch.

Em nível estético, Duna, de Denis Villeneuve, é realmente um filme impecável. A impressão que fica é de que toda a produção sabia exatamente o que estava fazendo, pois quase tudo funciona muito bem.

Ainda que os planetas Caladan, Giedi Prime e Arrakis, com culturas absolutamente díspares, tenham arquiteturas semelhantes, indicando que o mesmo designer fora responsável por tudo — uma espécie de Le Corbusier do ano 10.191 —, a personagem de Timothée Chalamet não seja a mais carismática do mundo e o filme termine de um jeito estranho, a obra não deixa a desejar porque tem muitos pontos positivos. Ainda está atrás de Blade Runner e Interstellar, mas já é um dos melhores sci-fis da atualidade.


O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho

— Orson Welles

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