MARCELO GONZAGA丨Resoluções de ano novo

Marcelo Gonzaga
Marcelo Gonzaga
Um simples professor e estudioso inconstante. Traduzi para o português as obras "A beleza salvará o mundo", de Gregory Wolfe, "Desejo Sexual", de Roger Scruton, e "Reflexões sobre a revolução na França", de Edmund Burke. Dei aulas de Inglês, Filosofia e História para alunos dos ensinos fundamental e médio, cursos livres sobre Filosofia e Literatura.

Comecei o ano pensando em Bruce Lee. Bom, não exatamente nele, mas em algo que ele disse ou teria dito, segundo o filme “Dragão: A História de Bruce Lee” (aliás, recomendo). Numa cena, questionado pela então namorada sobre o que faria com seu diploma de Filosofia, o mestre responde que agora pode filosofar sobre estar desempregado. E aqui estou, exceto pelo diploma – com alguma filosofia e nenhum emprego.

Certo do valor das máximas “o trabalho embrutece o homem”, “quem não herda fica na mesma” e outras mais, fiquei dividido entre o alívio e a ansiedade; ansiedade, antes que me entendam mal, por mulher e filhos, que, coitados, dependem da minha empregada condição para manter um certo grau de luxo e conforto. Mas por ser um otimista incurável (conhecidos atestam), comecei, com famélica avidez, a imaginar as vantagens do desemprego.

Agora sobra tempo.

Começou a vir tudo o que o trabalho supostamente impede de fazer: retomar projetos abandonados, ler, brincar com as crianças, dar mais atenção para a minha mulher (mais!?), aproveitar bem o tempo, aproveitar mal o tempo. Burro velho que sou, já me vi inúmeras vezes nessa armadilha, vezes o suficiente para reconhecê-la com velocidade.

A escassez do tempo dá um senso de realidade muito maior do que a sua infinitude. Pensando bem, talvez seja essa a justificativa moral da mortalidade: impedir que todos nos transformemos em eternos cretinos convictos. Com a titica de galinha que chamamos de cérebro a nos guiar, ficaríamos paralisados pela certeza de ter todo o tempo do mundo à disposição. “Em que espécie de cloaca nosso mundo não se transformaria?”, Holmes pergunta a Watson.

Tendo há pouco ministrado um pequeno curso sobre educação, comecei a me concentrar mais nisso e tentar melhorar a que eu ofereço aos meus filhos. Péssima ideia. Fico com vontade de agredir com requintes de crueldade quem com ela não colabora. Um episódio em especial me impressionou: numa competição amigável (juro) com minha esposa no Mario Kart, meu filho de quatro anos disse “Papai, eu te amo e quero que você vença sempre!” Cheio de orgulho e com essa enorme responsabilidade, vini vidi vici (afinal, para que serve um pai senão para que o filho se orgulhe dele?). Quando ele comemorou minha vitória, minha sogra, com um senso de oportunidade que só ela tem, rapidamente se aproximou e soltou: “Mas que moleque puxa-saco!” Ficamos estupefatos, ele e eu. Ele, mais esperto, logo superou e se distraiu; eu, ao contrário, estou há uma semana ruminando o fato do meu filho ter sido constrangido dentro da casa da avó, pela própria avó, só por ficar feliz pela vitória do pai. É um mundo cão. Fico aqui me perguntando, aliás, se todos não entendemos mal a passagem bíblica e a serpente não é só a mãe da Eva.

Comecei a me arrepender de filosofar sobre o (meu) desemprego e suas consequências. Como disse um sábio amigo, “o trabalho é o descanso do homem casado”. E do homem com filhos, acrescento. E do solteiro também… Eis que o trabalho também é um refúgio, um respiro necessário para o resto da vida. Mas para muitos é uma tirânica brincadeira de faz-de-conta, de crianças grandes que se recusam a crescer. O Ministério da Saúde precisa colocar aquelas plaquinhas por todo lado: “Trabalhe com moderação”. E, já que entrei no assunto, é bom investir no slogan “Filosofe com moderação”. Treco perigoso esse.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Ótimo texto de um fino humor e delicadeza de espírito. Parabéns, e continue a dar-nos esperança de que na noite escura centelhas de inteligência iluminarao o caminho!

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