MARCELO GONZAGA丨O mistério da clareza

Marcelo Gonzaga
Marcelo Gonzaga
Um simples professor e estudioso inconstante. Traduzi para o português as obras "A beleza salvará o mundo", de Gregory Wolfe, "Desejo Sexual", de Roger Scruton, e "Reflexões sobre a revolução na França", de Edmund Burke. Dei aulas de Inglês, Filosofia e História para alunos dos ensinos fundamental e médio, cursos livres sobre Filosofia e Literatura.

Na iminência de ter minha coluna batizada de “Casos de família” (com o consequente processo por violação de direitos autorais), resolvi deixar a torre de marfim e permiti que o mundo exterior contaminasse minhas excelsas reflexões. Como esperado, não demorou muito. Dois textos publicados no jornal O Dia, um recente e o outro também, trouxeram algumas surpresas. Sendo eu amigo do rei – do colunista, no caso – tive acesso privilegiado aos artigos. Li, gostei e opinei, mas, sujeito simples, ingênuo e esperançoso no gênero humano que sou, não estava preparado para a recepção que tiveram.

“Quem julga o juiz,” do final do ano passado, recuperou uma perplexidade da adolescência. Espero não ter sido o único a ficar cético sobre a qualidade da censura na época do regime militar. Discuti sobre isso num programa de rádio certa vez, apontando o desleixo do sistema repressor. Autorizar receita de bolo – especialmente as esquisitas – só pode ter sido de propósito. Ou assim eu suspeitava. O texto em questão, sob o pretexto de falar sobre o VAR (o do futebol), levantava uma óbvia questão sobre o Poder Moderador, digo, sobre o Judiciário. Ato falho, desculpem. Quando resolvi olhar alguns comentários e colher impressões, fiquei meditabundo. Houve quem reclamasse de que o texto se ocupava de um assunto trivial desses, em vez de mergulhar na profunda e sempre urgente política do dia. Cheguei até a ouvir, etérea, quase como uma reminiscência, a voz do Chico Buarque cantando “Pai, afasta de mim esse cálice.”

O outro, “Três leituras”, teve uma reviravolta ainda mais dramática. Eu nunca gostei e continuo não gostando do carnaval, mas descobri esses dias que essa posição pessoal é quase um crime. Pretensamente ofendidos com um comentário despretensioso que o autor tinha feito anos atrás, seus desafetos – todos eruditos e pessoas de bem, tenho certeza – quase me convenceram de que é a festa mais importante do universo. Pena que não avisaram disso o poeta Cruz e Souza, que em seu poema “Asco e Dor” demonstra ter, do carnaval, asco e dor. Que feio, Cisne Negro, traindo o movimento punk. Bom, o texto vai de Burke ao citado poeta catarinense e termina em Machado, com votos de que os histéricos tenham ao menos a honestidade de Simão Bacamarte. Um golpe bem dado, alguém pode pensar. É então que entram em cena forças terríveis, que o impedem de divulgar o escrito. O motivo? Também não sei, mas lembrei de um caso interessante das últimas Olimpíadas: o iraniano que levou a vitória por ter apanhado. Eis que acertar o golpe pode mesmo ser contra a regra. Vida difícil essa de juiz; a lógica e o fato servindo de obstáculo à administração da justiça.

Vejo-me, enfim, num dilema. Dado o estado da leitura no país, escrever parece uma atividade fadada ao fracasso. Só me resta confiar em ter como leitores os únicos brasileiros adequadamente alfabetizados (todos os cem, com a margem de erro do Datafolha). Vou acompanhar a contagem: se as visualizações chegarem ao milhar, poderei dormir tranquilo, na certeza de que fui mal compreendido.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

4 COMENTÁRIOS

  1. Estamos em 14. Faltam 986 visualizações (em pleno Carnaval!) para o Marcelo encontrar a tranquilidade.

    É possível, mas para facilitar: “tomara que chova três dias sem parar.” E falo em chuva, mesmo. “Cachaça não é água, não.” Não vale!

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