MARCELO GONZAGA丨Fernando Pessoa e a piscina de bolinhas

Marcelo Gonzaga
Marcelo Gonzaga
Um simples professor e estudioso inconstante. Traduzi para o português as obras "A beleza salvará o mundo", de Gregory Wolfe, "Desejo Sexual", de Roger Scruton, e "Reflexões sobre a revolução na França", de Edmund Burke. Dei aulas de Inglês, Filosofia e História para alunos dos ensinos fundamental e médio, cursos livres sobre Filosofia e Literatura.

Shopping centers não são uma escolha muito inocente a quem só quer dar uma volta. Não há nada para fazer que não envolva quantias grandes, enormes, mastodônticas de dinheiro. Aos pobres e sovinas, resta decidir se o passeio é um teste da fibra moral contra a tentação, ou – alternativa mais provável – uma forma de se entregar a um deslavado masoquismo. Um visionário, percebendo uma oportunidade comercial, criou um serviço para que os entusiastas do ambiente possam aproveitar seu prazer sem distração: os playgrounds pagos. “Mantemos seus filhos ocupados pela bagatela de centenas de reais por minuto!” Sucesso na certa.

“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena,” disse o poeta. E aproveitando a ida da minha mulher ao médico, resolvi, à maneira de Sócrates, pôr à prova o oráculo: acompanhei os meninos no famigerado parquinho (passear no shopping é que eu não ia). Passados alguns minutos de adaptação, já estava completamente absorto em reflexões da mais alta hierarquia. “Podiam fazer brinquedos maiores e mais complexos,” pensei, “para que os pais pudessem brincar também.” Mas fiquei imaginando a multidão de gente séria, o dorso da mão na cintura, horrorizada com a visão de adultos brincando com os filhos. Com um esgar, lembrei das palavras de C. S. Lewis, quando conclui, com muita razão, que ficar se preocupando em parecer adulto é coisa de criança. Ponto para Nárnia.

A seguir, as sinapses me conduziram a uma cena de filme que na infância muito me impressionou. Macaulay Culkin, interpretando Riquinho Rico, chama seus amigos para brincar no parque de diversões que tinha no jardim de casa. Quanto dinheiro isso custaria? E fiquei lamentando o prêmio da loteria que nunca ganhei. Muitas das minhas melhores ideias surgiram pensando no que faria com esse dinheiro, como a criação de um aplicativo que oferecesse avatares particulares com base num sistema simbólico, ou a criação de uma escola que trabalhasse a educação de maneira personalizada, ou, o mais importante, a construção de uma pista de carrinho bate-bate que andasse a (pelo menos) 40 km/h.

Eis então que a filha de alguém interrompe o concerto dos meus pensamentos clamando ser a rainha do brinquedo (ela tinha, de fato, uma coroa em que estavam inscritas as palavras “Rei da locomotiva”), e diz que eu não estava obedecendo a sei lá que ordem. Minha personalidade cativante me fez refém da menina. Lá pelas tantas, ela me confessa que sou o primeiro amigo adulto que ela tem. Fiquei preocupado. Fosse eu o pai dela (que, de acordo com a menina, não sabe escrever em letra cursiva), já ia chamar a polícia. Só no Mundo Bita as pessoas acham normal um sujeito de meia idade rondando parquinhos e brincando com crianças. O sequestro da minha atenção continua: “Você não gosta do seu filho mais velho?” escuto a voz dela perguntar. Percebendo a minha perplexidade, continua “é porque você só anda atrás do mais novo.” Estava prestes a explicar que o primeiro é mais civilizado e sabe me chamar se precisar, enquanto o segundo está treinando desde já para ser dublê de filme de ação, mas vi que era uma armadilha. Discretamente comecei a procurar alguém que me salvasse daquela situação. “Onde estão as pessoas que recebem para brincar com as crianças?” Uma delas finalmente acorda do estupor em que se encontrava e tenta interagir. “Você não manda em mim” foi a adorável resposta que recebeu. E a menina espantada por eu ser seu único amigo (adulto, sei).

Graças a Deus a consulta médica não era eterna, e minha mulher foi me salvar do cativeiro. Os meninos se divertiram, e pude sair de lá com a sensação de missão cumprida. Finda a experiência, cheguei a duas importantes conclusões: Pessoa estava certo; basta um pouco de esforço para aproveitar as inúmeras situações da vida. Até o ato de acompanhar as crianças brincando pode ser repleto de significado. E minha alma, modéstia mantida, deve ser pelo menos do tamanho do Disney World. Não vejo a hora de conferir.

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