MARCELO GONZAGA丨Contra todas as probabilidades

Marcelo Gonzaga
Marcelo Gonzaga
Um simples professor e estudioso inconstante. Traduzi para o português as obras "A beleza salvará o mundo", de Gregory Wolfe, "Desejo Sexual", de Roger Scruton, e "Reflexões sobre a revolução na França", de Edmund Burke. Dei aulas de Inglês, Filosofia e História para alunos dos ensinos fundamental e médio, cursos livres sobre Filosofia e Literatura.

Aconversa deve ser a atividade humana mais mal executada de todas. Dada sua antiguidade, o normal seria esperar um refinamento constante, uma capacidade cada vez maior de transmitir e captar as mensagens emitidas pelos outros. Só que as evidências, diriam os ingleses, insistem no contrário. Vejam o caso de Babel: Deus precisou confundir as falas para que as pessoas não entendessem umas às outras. Deviam ser todos gênios. Hoje, Deus precisa operar um milagre para um sujeito que fale a mesma língua que você consiga acompanhar um raciocínio até o fim. Os que entendem ironia e sarcasmo, então, são criaturas míticas, seres de existência rarefeita e duvidosa. Quando um cidadão de bem tem o infortúnio de cruzar com uma abominação deste quilate, age como todo homem sensato: num ataque de histeria (a natureza ensina que é importante parecer maior do que a ameaça), convoca para acabar com o monstro o time de futebol, alguns desavisados, a polícia, o corpo de bombeiros, eruditos de ambos os sexos e toda a ordem de anjos e demônios. Ainda bem que há gente bacana no mundo.

Tendo já participado de muitas conversas (em minha defesa, a maioria delas sem querer), notei a recorrência de três tipos principais de participantes, o selvagem, o intuitivo e o calculista, que interagem entre si como num jogo de pedra-papel-tesoura: selvagem vence calculista, calculista vence intuitivo, intuitivo vence selvagem.

O selvagem é, como o próprio nome diz, imune às regras da civilização; não se importa com o quê, nem com o como, nem com o quando fala. É um grupo grande, e comporta subdivisões. “O valor é o mesmo de pé e sentado,” diz o engraçado (palhaço para os íntimos) ao oferecer uma cadeira. “Você não sabe o que me aconteceu,” começa outro. “É aquela história dos ETs de novo?” interrompe um herói. “Então, lá estava eu andando na rua quando uma luz…” – vem o surdo que se julga interessante. “Por quê?” é um questionamento proibido para o melindrado, que, pobre coitado, nunca faz nada errado; natural que reaja com violência: “A culpa é sua, que está de cara feia.” Há também o erudito em tempo integral, que não perde oportunidade para deslindar seu vasto desconhecimento. “Conheço. Conheço sim,” disse certo professor sobre autor e livro que nem existem. A lista não é exaustiva, e qualquer semelhança com a realidade definitivamente não é mera coincidência.

O intuitivo, por sua vez, é mais refinado. Agindo com mais arte do que engenho, tem o mérito de falar a coisa certa na hora certa. Transita bem socialmente e os outros o percebem como sujeito simpático e de trato afável. Mas seu papo, apesar de agradável, deixa com aquela sensação gostosa de suicídio parcelado: “joguei minhas últimas horas no lixo.” Evito sempre que posso, mas não é incomum ver gente doidinha para pagar a próxima prestação.

O último – calculista – enxerga a conversa como uma atividade de alta complexidade, mede o que fala para reproduzir sua intenção com máxima precisão e tenta tirar disso algum proveito. São eventos que exigem atenção, compromisso e seriedade – mesmo que o assunto seja a amizade hipotética (mas altamente provável) do Batman com o Lex Luthor (afinal, nenhum dos dois acha normal que um maluco superpoderoso de outro planeta faça o que quiser só porque parece bonzinho). É o ritual, não o assunto, que importa.

A vantagem do selvagem sobre o calculista é assegurada pelo complexo do pombo enxadrista; o calculista fica sobrecarregado de pensar por dois, enquanto tudo o que o selvagem faz é cagar no tabuleiro e sair por aí voando. Não há possibilidade de explicação. O intuitivo vence o selvagem do mesmo modo que o flautista de Hamelin seduz seus ouvintes; nada melhor contra animais e crianças do que hipnotizá-las com um truque de mágica. É aquela conversa mole, cheia de elogios vazios e promessas impossíveis. Algo como trabalhar pelo bem comum, garantir picanha para o povo, concordar com a mulher numa discussão. Nada disso, claro, deve ser levado a sério. E o calculista, numa mimese socrática, é quem consegue desmascarar o intuitivo. Mas é sempre uma vitória relativa. A máscara pode ser mero adereço, que logo revela um conversador interessante; o mais comum, entretanto, é essa máscara ocultar, à semelhança do Fantasma da Ópera, um psicopata feio pra cacete, que não poupará esforços para acabar com a raça do desgraçado que o expôs.

É evidente que os calculistas são os mais fracos na batalha pela sobrevivência. Não à toa são o tipo menos escolhido; estão estatisticamente fadados à derrota. Mas tudo bem. Que lidem com isso. A vida é cheia de deveres inalienáveis. “Humilhar é preciso,” diria Pompeu, “viver não é preciso.”

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4 COMENTÁRIOS

  1. Posso tolerar os intuitivos: os calculistas também, por serem potencial matéria para outras conversas; mas os selvagens eu resolvi simplesmente bloquear. Costumava macaquear o intuitivo sempre que diante de um selvagem. Hoje simplesmente o deixo brincando sozinho na sala, quando me ocorre ser abordada.
    Grande texto.

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