ISRAEL SIMÕES | Ricos ou conformados

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Às vésperas de mais uma virada de ciclo, de fogos de artifício iluminando o céu, brindes, comilanças e outras futilidades necessárias, proponho ao leitor uma breve retrospectiva crítica sobre o tempo que estamos vivendo e o que está por vir, com enfoque privado, claro. Familiar. Não me arriscaria a profetizar nem a fazer, como tantos na internet, conjecturas sobre o desenrolar de acontecimentos em escala global. Sei do efeito deles sobre a vida particular, porque dela extraio observações diretas todos os dias. E isso me basta.

2023 foi o ano do fim da pandemia. Deixamos de nos ver como humanidade para voltar a agir em comunidade, preocupando-nos mais com os problemas locais do que com decisões da OMS, da União Europeia ou do FDA.

O novo governo brasileiro vem de dentro do sistema, portanto as pautas de costumes perdem força nas discussões da mesa de jantar. Não há contracultura oficial, apenas cultura, todos falando a mesma língua, numa inversão silenciosa sobre quem é, de fato, revolucionário (…). Ainda que estejamos vigilantes, estamos menos patrióticos, perdendo, por hora, aquele sentimento de povo.

A guerra entre Israel e Hamas é religiosa. Sobre ela nos posicionamos, mas dentro de uma simbologia ampla evocada pelos dois lados do conflito. Dialogamos sobre a guerra no contexto dos laços religiosos locais. Você não sairá discutindo, na fila do aeroporto, as últimas declarações do Netanyahu como debatia as do Bolsonaro.

Todo este ambiente é propício para nos dedicarmos mais à família, à igreja, à cultura regional, aos problemas caseiros, mas não é o que está acontecendo porque ainda estamos muito preocupados com carreira. Não falo apenas do pagar de contas, mas dos modos como se trabalha, o tempo que se dedica e, obviamente, a natureza da atividade executada. Nos últimos anos ficamos bem mais exigentes nesta matéria.

Primeiro porque, durante a pandemia, muitos tomaram gosto por jornadas flexíveis, autonomia e mesmo a ideia de um negócio próprio, mas o mercado continua limitado em oportunidades e grande parte do empresariado não se modernizou.

Segundo porque o tempo gasto em redes sociais cresceu. As pessoas estão com novas referências de estilo de vida, criando expectativas mais altas sobre o seu futuro.

Terceiro porque a inflação encareceu a vida da classe média. Casa, carro, alimentação e vestuário dispararam nos preços. Nem uma blusinha da C&A a gente paga à vista. O hambúrguer da esquina já passou dos 25 reais. Quem queira manter um padrão razoável de vida deverá se mexer.

Tradicionalmente a vocação e o emprego são demandas que resolvemos antes dos 30 anos de idade, mas nestas circunstâncias, pouca gente consegue esse feito.

Portanto muitos de vocês vão virar o ano não tão felizes e saltitantes, ainda que disfarcem bem. São pais e mães entre 32 e 48 anos com inúmeras responsabilidades domésticas e comunitárias, mas ainda colocando energia em processos seletivos, concursos, empreendedorismos e investimentos. Não que o trabalho não seja um eixo orientador da trajetória de cada um porque é, até o último minuto de vida. Mas a demanda pelo emprego propriamente dito, aquela atividade que fazemos bem-feita, que nos remunera satisfatoriamente e que nos proporciona bem-estar, isso é demanda juvenil. Não deveria ocupar nossas preocupações tão insistentemente.

O sucesso profissional exige performance social e o manejo de relacionamentos secundários. Quem quer atrair melhores oportunidades de trabalho também precisa investir em cursos, eventos e intercâmbios que são vividos individualmente. Isso tende a gerar um comportamento de autocentramento na família: cada um, dentro de casa, com sua própria rotina e obrigações pessoais.

Ou seja, estamos perdendo uma poderosa janela de oportunidade.

Um tempo que seria propício para reuniões em grupos vizinhos, associações, agremiações familiares e comunitárias com visão e interesses em comum, criando projetos, parcerias, iniciativas intelectuais e culturais diversas; para redes colaborativas que fortalecem amizades entre casais na mesma faixa de idade e a aproximação de seus filhos, todos crescendo juntos, compartilhando preocupações e taças de vinho; tudo isso está postergado.

Cada um está pensando mais em si, em como ganhar dinheiro rápido fazendo trade ou lançando um produto digital que renda 6 em 7. Nos casos mais graves, novos cursos superiores, novos empréstimos no banco ou aquele projeto desesperado de morar em Portugal.

A verdade é que muitos de vocês estão entrando em 2024 ansiosos por estabilizar a vida financeira e as demandas de carreira para, finalmente, quem sabe, serem bons pais, maridos, esposas, amigos, cidadãos, filhos de Deus. Enquanto isso vão empurrando uma vida fragmentada, exaustiva, quando não adoecedora.

Esta conversão de energia do ambiente público para o particular, se não acontece, faz os filhos crescerem prejudicados por uma rotina rígida e relacionamentos com pouco tempo de qualidade. Isso quando os próprios casamentos não acabam.

Se as estruturas familiares se desintegram, aí sim, podemos apostar em uma geração condenada à fraqueza, à carência, à frustração, com alto risco de insanidade.

Como não sou profeta, muito menos do apocalipse, preciso terminar esta retrospectiva com alguma luz no fim do túnel. E já aviso: ela não vai subir irrompendo cores no céu, não será vislumbrada nas efusivas comemorações de fim de ano. Não caiam na armadilha de renovar ambições autoprojetivas como quem começa a acreditar mais em si mesmo, do dia para a noite, porque vestiu uma bela roupa, deu uma boa gozada, ficou embriagado.

Sigam o conselho de Ortega y Gasset e assumam as suas circunstâncias.

Amanhã, quando acabar a contagem regressiva, observem os céus depois que o último fogo de artifício minguar. Contemplem as nuvens, as estrelas, a escuridão da noite e sintam o corpo doer, manifestar cansaço, pedir cama. Vejam as pessoas dando as costas, indo embora e permaneçam por mais um pouco. Sintam o cheiro do lixo no chão. A realidade sempre nos exige aterrissagem.

Absorvam todo este cenário que aqui, juntos, acabamos de traçar, como um mal inevitável que em nada os enfraquecerá, mas que dará a medida exata de sofrimento que virá pela frente, na rota dos objetivos traçados para o próximo ciclo.

Enquanto o dinheiro for a fronteira da sua personalidade, o círculo no qual orbitam suas motivações, a boa parte estará sendo deixada de lado.

Resolvam logo esta agonia. Ricos ou conformados.

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