ISRAEL SIMÕES | O sogro, o genro, a filha e o Brasil inteiro

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

A invenção da fotografia remonta a meados do séc. XIX. Da câmera de vídeo, ao final do mesmo século. Menos de 100 anos depois surge a internet. Tudo coisa moderna, certo? Exceto a curiosidade humana que, se já existia antes da queda, foi atiçada por Satanás, ao abrir nossos olhos e ouvidos para o que simplesmente não deveríamos saber. Sem foto, sem vídeo e sem internet, imunes ao veneno maligno que nos dá gosto por tudo que é proibido, não saberíamos da história de Camila Oliveira, moça de Araraquara que descobriu um caso amoroso do marido com o seu próprio pai. Em nada nos acrescenta, nem ao menos nos diverte, mas provavelmente você ficou sabendo do entrevero, já que as redes sociais elegeram esta tragédia familiar a pauta da semana.

Camila disponibilizou o dossiê completo em sua conta no Facebook: mensagens de Whatsapp, fotos e até um vídeo do pai com o marido em um motel. Rapidamente o material se espalhou nos grupos de Whatsapp, gerando piadas nos bares e postos de gasolina, além de uma disputa entre os portais de notícias sobre quem tinha mais detalhes da história. Nos comentários das postagens nas redes sociais, muita gente perguntava onde poderia ter acesso às imagens, especialmente uma gravação de um ato sexual entre o homem e seu sogro.

E de repente pairou no ar um certo constrangimento. Primeiro porque a moça botou fogo no carro do marido, enquanto o pai gritava descontrolado no meio da rua até ser espancado por vizinhos e encaminhado a um hospital. Segundo porque surgiram informações de que Camila já teria cometido crimes na região, bem como o seu marido, e que o caso envolveria assédio, chantagem e tortura psicológica. As próprias imagens que circularam pela internet revelam, no marido de Camila, um homem triste e acuado, de olhar pesado, que causa incômodo.

O que era uma putariazinha despretensiosa ficou macabro demais, então morreu o assunto. Próxima pauta.

É assim que funcionam as coisas no Brasil: toleramos o caos, mas só um pouquinho. Quando o caso deveria de fato despertar a curiosidade, o interesse e até o senso de justiça, ou quem sabe solidariedade, as pessoas viram as costas à procura do próximo bode expiatório, cuja decadência ofereça um consolo para um povo que evita, no espelho, a constatação das próprias misérias.

Se observarmos o comportamento do telespectador brasileiro em reality shows, veremos exatamente o mesmo padrão: ele gosta da safadeza, da manipulação e alguma dose de confusão, desde que dosados por humor e leveza, o famoso “alívio cômico”. Todo filme, novela, programa de televisão, campanha eleitoral, culto, reunião de condomínio, almoço de família e seminário acadêmico tem que ter uma piadinha, um lanchinho e tem que ser rápido. Não pode pesar nem exigir esforço demais.

É por isso que a psicoterapia exercida neste país é, em geral, inócua: os terapeutas têm pressa para resolver os problemas de quem lhes procura, frequentemente oferecendo sermões sentenciais no lugar das indagações que são próprias dos estados de investigação e dúvida. Pior: é comum que se tornem amigos dos seus pacientes, abdicando de sua autoridade pela necessidade de ser “gente boa”.

A classe intelectual e artística do Projac, muito consciente deste aspecto escorregadio da cultura brasileira, que nos lança na arena do jogo social com piso de lona e espuma de sabão, produz uma militância de 5ª série que prende nossos filhos em pequenas rebeliões e constantes intrigas, desde que tolas, pouco relevantes. E contraditórias: o rebelde adolescente não sente a menor vergonha em lançar mão da liberdade sexual enquanto aponta o dedo para qualquer sujeito que se envolva em um escandalozinho sexual qualquer. É o sujo falando do mal lavado.

Somente neste estado de moralidade da conveniência, de artificialidade retórica travestida de cristandade, é que alguém ousa rir desta indecência do caso de Araraquara enquanto busca ávido por fotos e gravações dos encontros sexuais entre genro e sogro, por minúcias cada vez mais minuciosas de como se deu a libertinagem toda. A verdade é que ninguém está interessado nem nas pessoas nem nos princípios, somente nos detalhes, o que é a marca central da modernidade: deslocar o acontecimento histórico como aprendizado exemplar para focar na particularidade de cada acontecimento histórico.

Nem que seja para testemunhar um beijo grego incestuoso, cujo alvoroço, em tempos normais, não passaria da porta do açougue na esquina do quarteirão de baixo.

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