ISRAEL SIMÕES | A flama que não se apaga

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Sempre invejei as pessoas de boa memória. Não guardo com nitidez as imagens da minha primeira infância e fico perplexo quando ouço, dos meus pacientes, relatos de experiências vividas aos dois ou três anos de idade. Digamos que é próprio dos curiosos olhar para o futuro, empolgado que sempre está com as novidades. Nosso passado vai se apagando contra a nossa vontade, fora do nosso controle. O pouco que resta, justamente por ser raro, é valioso.

O que tenho de acervo são as lembranças do meu tempo de criança na Igreja Presbiteriana do Bairro Santa Cruz, na região nordeste de Belo Horizonte, cidade onde nasci e cresci. Era uma igreja simples e de gente simples, com muitas famílias, crianças, senhoras e bebês. Nada dessa coisa moderna de parede preta, luzes e uma galera de solteiros descolados e bem vestidos. Ali os homens usavam camisa social para dentro da calça e as mulheres, em geral, vestidos, ou calças altas que marcavam a cintura com um cinto para reforçar. Os meninos cantavam que eram soldadinhos de Jesus; as meninas, florzinhas. Nos dias de festa os homens carregavam as mesas, ascendiam os carvões, espetavam as carnes, enquanto as mulheres iam para a cozinha picar tomates e cebolas. Eles falavam de futebol; elas, deles.

As crianças corriam soltas, subindo e descendo, dando a volta no terreno, caçando os calangos, metendo farpas nos dedos e ralando os joelhos. Sempre dávamos um jeito de assustar as meninas, que corriam gritando, para a nossa risaiada, até nos assentarmos, todos juntos, para almoçar. Chamávamos estes momentos de comunhão.

Eu andava com os meninos e minha irmã com as meninas. Uma delas se chama Louise e sempre implicava comigo, me colocando apelidos e recebendo, da minha turma de amigos, a devida retaliação. Os adultos diziam que éramos namorados e ambos nos revoltávamos. Havia uma tensão leve e infantil naquela relação.

Meu pai era o pastor e também músico, conduzindo a igreja no violão e voz. Estava sempre de terno e sempre suado, pois os ventiladores presos na parede não davam conta de arejar o templo. Enquanto ele pregava, eu ficava deitado no colo de minha mãe. Ainda lembro a sensação daquela pele macia, com cheiro de creme, do colo afofado de quem tinha quadril largo e seios fartos. Seus cabelos desciam loiros e cacheados pelo pescoço. De baixo para cima, aquela visão parecia a coisa mais bonita de se ver neste mundo. Nunca gostou de muito destaque, mas cantava, cozinhava, dava aula e ensaiava os corinhos de natal com as crianças.

Também, entre as poucas memórias, estão Tia Alice e Tia Regina, duas irmãs que iam à igreja, todos os domingos, com seus maridos e filhos. Regina era mais loira e séria, tinha a voz rouca e sempre usava batom vermelho; Alice tinha os cabelos pretos e era bastante risonha, minha preferida, diga-se de passagem. De novo, não tenho muitas imagens precisas na cabeça, mas lembro de admirar aquelas mulheres por sua beleza e feminilidade. Dotadas de personalidades fortes, especialmente Regina, víamos nelas uma vontade firme ser moderada pela graciosidade. O papel de professora da escola dominical lhes caía muito bem: colocavam ordem na sala, nos faziam obedecer, ao mesmo tempo em que nos despertavam o interesse para as histórias bíblicas. Ainda pequenos já sabíamos, de cor, os dez mandamentos, o salmo 23, a oração do Pai Nosso, as 10 pragas do Egito.

Alice era casada com Raimundo, que era presbítero. No presbiterianismo este é ofício de quem governa a igreja dentro de um Conselho local. Não lembro de chama-lo de tio, pois era mais inacessível, como os outros homens que ocupavam os bancos da frente no dia de Ceia. Todos eram muito respeitados pela igreja. Perto dos presbíteros aprumávamos o corpo, fingindo prestar atenção nas longas pregações que meu pai fazia do alto do púlpito.

A liderança oficial dentro da igreja presbiteriana é toda masculina, não como um privilégio, mas como um dever, deixado pelo próprio Cristo aos seus discípulos antes de subir aos céus. Com o passar dos anos, esta configuração que coloca os homens à frente e as mulheres na retaguarda passou a ser questionada, formalmente, nas instâncias superiores da igreja, especialmente depois que as escolas dominicais migraram do estilo sala de aula para rodas de conversa, como se fossem aqueles seminários dos cursos de humanas das universidades públicas. Assim se converteram em espaços simpáticos a qualquer opiniãozinha imediata e espontânea, fomentando intrigas que logo criam raízes e dão origem a novos troncos: panelas, grupos, movimentos.

Enquanto pastores e presbíteros discutem os rumos da igreja, em uma sociedade cada vez mais anticristã, precisam também se esforçar para prevenir as divisões que marcam a história da denominação: aquelas que vêm de dentro, entre as quais as motivadas pelo tema da participação feminina.

Veja bem: elas participam, só não lideram, justamente pela igreja ser uma comunidade que amplifica, socialmente, a estrutura familiar. Sim, porque toda pirâmide tem uma ponta, toda hierarquia tem o último cabeça. Se aprouve a Deus dar aos homens força e coragem para vencer batalhas, são eles que vão a frente, arrebentando trancas e portões, arrancando do inferno as almas escravizadas, para depois serem acolhidas pelas irmãs de generosa oração e hospitalidade. É uma organização que converge com a história, com a natureza e com a institucionalidade que rege o exercício da fé nos tempos modernos.

Para o desespero de algumas irmãs da academia, da ciência e do mundo corporativo, que se consideram muito doutas para ficarem sentadas no banco da igreja ouvindo um homem, o presbiterianismo tem persistido em distinguir papeis. Seria um equívoco vulgar organizar o corpo de Cristo pelo princípio moderno da igualdade de direitos, como se Deus tivesse criado a igreja para satisfazer as ambições intelectuais dos mais instruídos.

Somos iguais, homens e mulheres, pela evidência natural de uma essência universal humana, corroborada pela fé que nos chama, a todos, filhos de Deus. A partir desta igualdade fundamental distinguimos os machos das fêmeas, os pênis das vaginas, os maridos das esposas, os pais das mães, os meninos das meninas, os pastores das mulheres de pastores. E se apenas neste último exemplo fica clara a hierarquia produzida pelas diferenças, já que não utilizei o termo “pastoras”, é porque muitos já se fizeram cegos para reconhecer a dominação evidente dos machos sobre as fêmeas, ou das genitálias entre si, ou dos meninos que descem os morros nos carrinhos de rolimã enquanto as meninas apenas assistem, gritando em torcida…

A hierarquia entre homens e mulheres é tão óbvia que, nas igrejas presbiterianas que abrigam estas senhoras de militância soft, o poder não está nas mãos de mulheres, mas do macho que obtém o maior apoio da plateia feminina. E isto sem qualquer protesto, já que estes homens de espírito evoluído, de gestos delicados e exortações afáveis, se apoiam nas mulheres para comandar, alimentando uma artificial simbiose de vantagens mútuas, de condições democráticas.

Pois se são assim que as coisas são, se para além das igualdades as diferenças permanecem, prefiro igreja à moda antiga, como aquela pequena construção inacabada em um bairro simples da capital mineira. Ali fui agraciado pela presença de mulheres tão educadas, bondosas, acolhedoras e conciliadoras que, em contraste com a presença rústica dos homens de terno (que também calçavam a botina quando um mutirão de obra pesada era necessário), me fizeram gostar de mulheres muito antes de que eu me fizesse moço, apenas por sua presença.

O exemplo de Alice, Regina, Viviane, Meirilane, Sônia, Claudia e de minha mãe, Maiza, são para mim a esperança de que a feminilidade resistirá com toda a sua potência, como flama que não se apaga, protegendo os homens das armadilhas do ego, das ciladas do coração e dos raciocínios amargurados que tanto nos segmentam.

Acima de tudo dos homens fracos, cujo sorriso no rosto esconde uma vida centrada na autodefesa, na superação de suas próprias fragilidades, desprovida de qualquer traço do heroísmo bronco sem o qual a igreja não estaria, hoje, de pé.

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