ISRAEL SIMÕES 丨 Vacinas, piadas e a vila do Sr. Barriga

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Se tem uma exortação que faço frequentemente aos meus pacientes e seguidores é esta: preserve o senso das proporções. Falo daquela faculdade humana elementar que distingue o grande do pequeno, o belo do feio, o justo do injusto, tão essencial a qualquer raciocínio moral. Por diferenciar também o universal do particular, o absoluto do relativo, podemos dizer que o senso das proporções é a razão inteira, ajustando, da mente para o corpo, percepções e emoções na medida da realidade. Nem mais, nem menos.

Mas parece que, no Brasil, está cada vez mais difícil encontrar a mais simples relação coerente entre grandezas. Especialmente nossa Intelligentsia adentra no debate público e emite opiniões com um nível de histeria e afetação que logo desviam a reflexão geral para sentenças cabais e irrevogáveis sem pé nem cabeça.

Vejam o caso da Operação Venire, deflagrada pela Polícia Federal no âmbito do interminável inquérito das “milícias digitais”: apreendeu o celular e pertences pessoais de Bolsonaro, com ampla cobertura da grande mídia, por causa de uma suposta falsificação de cartão de vacina que viabilizaria uma viagem sua aos Estados Unidos. Ocorre que o ex-presidente se enquadrava na lista de pessoas que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano (CDC) permite entrar no país sem comprovação de vacinação. Ele e sua filha, Laura, de 12 anos de idade, que também teria o seu cartão de vacina adulterado.

Por que este falso escândalo ocupa boa parte do Jornal Nacional? E por que Bolsonaro continua sendo o alvo preferido de todo mainstream político e midiático, quando é o presidente Lula quem está colecionando polêmicas logo nos primeiros meses de governo?

Obviamente não sou tolo de pensar que, o absurdo aqui, se deva a falta de bom senso; sei que é proposital, conforme interesses e jogos de poder. Mas falo do povo, dos comentários nas redes sociais dos sujeitos comuns. Há um número aparentemente crescente de pessoas que se permitem chocar pelos escândalos mais fantasiosos, pelos erros mais pueris.

Prova disso foi o caso do jogador de vôlei Wallace: a maior estrela do voleibol brasileiro na última década, grande responsável pela medalha de ouro da seleção brasileira nas Olimpíadas do Rio, em 2016, fez um comentário sobre matar Lula, em seus stories, no mesmo nível de ofensas e ameaças sofridas por Bolsonaro nos últimos quatro anos. Na verdade, muito menos do que isso: ele apenas respondeu um seguidor que, em cima de uma foto sua, em um clube de tiro, questionou se ele atiraria em Lula, o qual ele respondeu com uma enquete aos seus seguidores perguntando se eles fariam isso.

Este simples episódio sem qualquer reverberação importante levou o Comitê Olímpico Brasileiro a punir o atleta, na última semana, com cinco anos (isso mesmo, cinco!) de suspensão das quadras, tanto na atuação por clubes quanto pela seleção brasileira. O jogador fará 36 anos este ano e acaba de ser campeão da superliga nacional pelo Sada Cruzeiro.

É uma punição maior do que aquela sofrida por atletas pegos no doping, mas nas redes sociais, há uma infinidade de pessoas apoiando a decisão, dizendo que ela é “educativa”. Na grande mídia também não houve praticamente ninguém que saísse em defesa do jogador. Nem mesmo seus ex-parceiros de seleção se manifestaram, obviamente com medo do cancelamento.

Wallace está aposentado, portanto, pelo supremo tribunal do esporte, sem direito à defesa.

Esta perda do senso das proporções é o primeiro sintoma de todo paciente neurótico. Ele já não distingue verdades de mentiras. Pior: recusa-se a saber. É uma revolta contra a própria inteligência, já que o esforço por se reinstalar, dia após dia, no âmago da realidade dá trabalho demais. Mais fácil seguir a mentalidade corrente.

Parece que estamos adentrando em uma geração de Donas Florindas, que reage com tapas a qualquer palavra que lhe pareça minimamente ofensiva.

Pensando bem, todos os personagens do programa humorístico Chaves, um dos maiores sucessos na TV aberta brasileira, parecem um tanto descalibrados em sua percepção de proporcionalidade: Kiko vive chorando por qualquer frustraçãozinha boba; Dona Clotilde é completamente apaixonada pelo Seu Madruga que, convenhamos, não tem lá muitos atributos que sejam atrativos; este, aliás, distribui pancadas sobre as crianças, mas apanha de Dona Florinda sem revidar. O próprio Chaves tem seus rompantes de agressividade, distribuindo socos que não fazem muito sentido.

Talvez seja este o segredo do humor atemporal do programa: o exagero, o absurdo, misturando autenticidade com fantasia na vida pobre e comum do cortiço do Sr. Barriga. No espetáculo de invencionices das elites brasileiras, por outro lado, o show está cada vez mais melancólico.

Porque até as futilidades andam perseguindo, criminalizando sátiras, piadas e cartões de vacina, enquanto os verdadeiros bandidos agravam a tragicômica realidade de um país que não se leva a sério.

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