Discurso contra o pecado
Sentei-me à sua frente num dos poucos bancos vermelhos à disposição; o comboio seguia para a Júlio Prestes. Confesso ser ignorante quanto aos critérios que norteiam os responsáveis por decidir a cor dos assentos dos trens da CPTM. Tenho comigo a opinião de que a cor cinza deveria ser destinada à identificação dos bancos comuns; e a cor vermelha, à dos assentos próprios da gente mais necessitada, como grávidas e idosos. Mas não é assim: aqueles que não demandam nenhuma atenção especial sentam-se nos bancos vermelhos, a cor com a qual a natureza grita “atenção!”.
Eu gosto imenso de observar os idosos. Gosto de ouvir-lhes a conversa. E este à minha frente falava muito. Antes de começar a prestar atenção na matéria sobre a qual o velhinho discorria, tentei naturalmente perceber com quem diretamente ele falava. Havia, claro, pessoas à volta do homem, o trem estava bastante cheio – embora não lotado, eu diria. Mas, pelo menos aparentemente, ele não falava com ninguém especificamente. Simplesmente abria a boca e dava vazão às palavras.
O curioso era que o homem falava com entonação, com ritmo, com correção e, acrescento, falava até com melodia. Mas não se dirigia a ninguém. E os outros aceitavam sem protestar, sem demonstrar estranheza; talvez até o ignorassem. Quem não estivesse com os seus fones pregados aos ouvidos, lia qualquer coisa digna do tempo de viagem, ou tentava vislumbrar a paisagem através da janela. Só eu prestava atenção no velhinho. Mas procurava fazê-lo de tal modo que nem ele nem quaisquer dos outros passageiros notassem o meu interesse. Eu o ouvia com atenção, mas assumia tal postura que ninguém poderia suspeitar de mim.
A verdade é que não tenho como saber com certeza se o velhinho do trem não era ouvido – e com atenção — por quem estivesse ao lado. Talvez os outros apenas disfarçassem a atenção. Depois de aceitar que as coisas eram assim e que não adiantava esboçar indignação com aquela frieza, falta de educação e de caridade dos passageiros para com o orador desprezado, passei a dar atenção à substância do seu discurso. Não foi longo, ou, melhor, só pude inteligir pouco. Ele dizia que viera de Pindamonhangaba para São Paulo só para conhecer a Estação da Luz. Pobre coitado! Talvez a Luz da sua imaginação seja a antiga estação da belle époque destruída pelo mau gosto demoníaco dos novos tempos. À saída da Luz os homens não mais tiram o chapéu às moças bonitas. Não. Alguns mostram a pistola, anunciam a limpa e, como piratas urbanos, vão comemorar a pilhagem com cachimbos de crack e goles generosos de Corote, Pitú ou quaisquer marcas de aguardente dignas da mesma barateza. Pobre coitado! Melhor ele desistir e voltar para a sua Pindamonhangaba.
“Você sabe o que é pecado, meu filho? Olha, o pecado é aquela coisa gostosa mas errada que nós fazemos às escondidas precisamente porque sabemos que é errada, e também pela vergonha de mostrar que estamos gostando. Eu acho, meu filho, que não é possível ir para o Céu sem sinceridade, sabe? Como é possível obter perdão sem antes manifestar arrependimento? E, olha, a sinceridade é o primeiro passo para o arrependimento; é não fechar os olhos para o tamanho do quiprocó feito. Eu observo que quanto mais o sujeito se alegra em pecar em público, menos possibilidade de arrependimento ele tem. Hoje em dia tá todo mundo assim. É o fim”. E quando ele disse “é o fim”, a voz no autofalante do comboio completou: “(…) cuidado com o vão entre o trem e a plataforma”. Saí do trem pensando nas palavras do velhinho, eu não ia para a Luz.
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