ISRAEL SIMÕES 丨 A luz que faz milagres

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Estávamos voltando para casa, depois de um típico passeio a pé de feriado, quando uma pequena multidão de famílias, muitas senhoras e uns poucos jovens passaram por nós caminhando em procissão, segurando velas e entoando velhas canções. Era a solenidade do Corpus Christi, data em que os católicos comemoram o sacramento da Eucaristia, aquela comunhão misteriosa em que o corpo de Cristo é partilhado entre os fiéis. Século após século, este rito cerimonial renova o sacrifício do filho de Deus na cruz e os milagres que, por meio dele, se multiplicam, dos arredores de Jerusalém às longes ilhas, nas mãos de homens poderosos e no coração dos mais humildes. A luz não distingue, só passa. E a todos, aquece.

O cortejo terminava em uma rua residencial um tanto escura, com alguns bares e uma padaria na esquina. Logo que viram o tapete estendido sobre o asfalto ser ocupado, alguns senhores que bebiam cerveja nas mesinhas da calçada se levantaram e adotaram uma postura um tanto firme, respeitosa, até esforçada, como criança que freia a inquietação porque é hora de cantar o parabéns. Em contraste, um grupo de jovens sentados em outra mesa parecia incomodado com aquela solenidade cobrindo o som e as risadas antes animadas. Um deles pegou o celular e começou a gravar um vídeo. Os amigos faziam piadas, caras de nojo, dedo do meio. Uma das moças fez questão de renovar o seu batom, exibindo o seu gosto pela trivialidade das aparências, como um sinal de desprezo àquele ajuntamento antiquado.

O curioso é que quando vão assistir Avatar, Jogos Vorazes ou os shows da Beyoncé, esses mesmos jovens rebeldes ficam encantados pelos símbolos, gestos e cantos primitivos, especialmente aqueles similares aos cultivados por povos indígenas e de matriz africana. Queen B, por exemplo, em sua última turnê The Formation World Tour, não economizou nos jogos de luzes e labaredas de fogo entremeados por simbologia egípcia, árabe e rastafári. Uma miscelânea de encher os olhos, para o delírio dos que se acham incrédulos.

Esta constatação me faz pensar que o problema desses moços universitários, pretensos vanguardistas e amantes do progresso, não é a religião em si, mas a fé cristã que seus pais lhe transmitiram, provavelmente num misto de amor e autoridade.

Tive a oportunidade de conviver com muitos deles nos oito anos em que trabalhei dentro de um campus universitário. Nesses grupos as meninas manifestam um apreço pela vida boêmia; gostam de estar entre os meninos, rir de suas piadas, dançar livremente. Muitas delas saíram de casa brigadas com os pais, pois eles contavam com um genro e netos, não cigarros e tatuagens. Já os rapazes, de modo geral, são os que fogem do estereótipo masculino brasileiro, tendo mais interesse em cinema e psicologia do que em futebol ou pornografia. Não são musculosos nem grosseiros em seus gestos, pelo contrário: podem ser bastante simpáticos e gentis. Esses modos delicados também enfrentam, com frequência, a resistência de pais cheios de expectativas sobre o filho macho.

A incompreensão daqueles que deveriam amar, proteger e moldar suas identidades acaba se transformando em uma neurose de que toda ordem é opressora, toda ancianidade, ignorância e que são eles, os bolsistas de pesquisa, os verdadeiros esclarecidos. Não carregam velas porque se transmutaram nas próprias, com suas mentes abarrotadas de Foucault, Paulo Freire e Simone de Beauvoir. Alguns se arvoram tão paladinos da verdade e, ao mesmo tempo, tão vítimas da sociedade, que se tornam agressivos contra qualquer sujeito mais sério que os faça lembrar aquelas custosas obrigações da infância, os regramentos de dentro de casa. O que podemos até entender, mas jamais justificar.

Se no consultório encontrarão a minha mais sincera acolhida, nas ruas terão que lidar com a minha cara-de-quem-está-vendo. Riram baixinho ontem, os debochados, pois em posição relativamente distante do grupo, fiz o papel de guarda-costas, cruzando os braços e encarando cada um deles olho no olho. Posso não ser católico, mas reconheço o valor de uma comunidade que se reúne para compartilhar sua fé, conectando gerações, dando sentido e unidade aos fragmentos desta nossa jornada errante e temerária. Uma cruz pendurada entre os dedos enrugados vale mais que as mochilas abarrotadas de livros.

Aqueles pontos de luz em meio à noite de bebedeira eram um pequeno sinal visível daquilo que, por ser invisível, frequentemente esquecemos: Ele está entre nós. O corpo de Cristo permanece vivo e pronto para ser torturado, quantas vezes forem necessárias, para o perdão dos nossos pecados e também de seus zombadores.

Outro dia falei com uma paciente aflita, cheia de conflitos no casamento e quase desesperançosa sobre o seu futuro, que um corpo ressecado é incapaz de amar. Cristo teve o seu lado aberto e dele jorraram sangue e água. Vida em abundância.

Portanto deixem a luz passar. Há muitos cadáveres pelas calçadas, putrefazendo suas feridas no lugar de trata-las.

Deixem o Corpo de Deus realizar, a quantos quiserem, o milagre da ressurreição.

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