ISRAEL SIMÕES丨Xuxa aterrissada

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Ela apareceu com os cabelos desgrenhados, óculos no meio do nariz, camisa larga por fora da calça preta básica, tênis e cara de poucos amigos. Marlene Mattos, empresária e produtora de televisão, responsável por quase 20 anos de sucesso de Xuxa nas manhãs da Globo, topou participar de um reencontro com a ex-rainha dos baixinhos em “Xuxa, o documentário”, disponível pelo Globoplay.

Pedro Bial, diretor da série, criou um cenário um tanto dramático para o episódio: colocou Xuxa sentada na poltrona de um auditório vazio, iluminada sob um único holofote, até que Marlene abre a grande porta, adentra no recinto, senta-se ao seu lado (sem qualquer contato físico entre ambas) e dá início ao fatídico diálogo.

Como vivemos tempos de comunicação não-violenta, de discursos açucarados e euforias do tipo “O amor venceu”, em que pessoas com perfil sincerão são canceladas por seu suposto ódio (ainda que o resultado de suas ações seja infinitamente mais útil e sadio que as obscenidades dos fofinhos de plantão), provavelmente Xuxa esperava afagos e pedidos de desculpas por suas alegações de maus tratos e exploração.

Pois bem, deu com os burros n’água. Marlene continua tipicamente nordestina, arretada, em nada atualizada nessa gourmetização dos modos de ser que impera nas relações dos dias de hoje. Em um dos trechos divulgados, a empresária olha fixamente para Xuxa e, ligeiramente irritada, declara:

“O mundo não é isso que você quer que seja. A gente tem que agir, às vezes, de forma realística […]. Você me diz que você era uma marionete na minha mão e eu usava você para fazer outras pessoas de marionete. E é assim”.

Uau! Parece que alguém resolveu descrever a realidade crua da indústria do entretenimento, uma deliberada exploração da ingenuidade alheia onde todos saem ganhando: as emissoras têm sua audiência; os apresentadores, fama; e o público aquelas distrações mais pueris que nos relaxam no sofá. Para as crianças da época, o Planeta Xuxa era uma fuga das intermináveis obrigações escolares e dominicais, um mundo colorido cheio de pipoca, algodão-doce, florestas, golfinhos, loiras bonitas, maiôs cavados, piadas de duplo sentido e dancinhas de bambolê.

Quem não acompanhou o “reinado” de Maria Meneghel saiba que em nada ela se parecia com esta que, agora, vai ao Congresso Nacional militar contra a disciplina tradicional de filhos e que sugere a reescrita da Bíblia. À época Xuxa era um tanto politicamente incorreta, chamando crianças gordas de gordas sem a menor cerimônia. Em um episódio que virou bordão, um tanto impaciente com a garotada que lhe cercava, a apresentadora se dirigiu a uma menina que lhe mostrava uma espécie de bilhete com indiferença e disparou: “Aham Cláudia, senta lá”.

Mas Xuxa se atualizou. Marlene, não.

Temos aqui, portanto, o reencontro de veteranas da TV que apontam duas perspectivas para uma mesma trajetória: de um lado Marlene, uma jogadora convicta, impiedosa como exige a selva, mas que sabe competir e vencer. Foi o que ela mesma declarou em suas redes sociais após as primeiras exibições do documentário: “Eu não sei ser condescendente com gente burra, sabe? Eu sou exigente? Sou. Chego a ser cruel? Sou, sou. Mas, olha: eu sei fazer as coisas. Quando eu me proponho, eu sei fazer as coisas”. E do outro lado Xuxa, que condena, da mais alta moralidade, o jogo de intrigas que a levou a ser rica, conhecida e ter um documentário que, hoje, carrega o seu próprio nome.

Resolvam esta contradição: que do lugar privilegiado da fama se levante um dedo em riste para denunciar as engrenagens da indústria da fama.

Não por acaso, há anos, Xuxa não emplaca um sucesso na TV. Talvez por querer mesmo converter-se em um ser de outro planeta, que desceu em uma nave espacial para nos ensinar o caminho do bem, da paz e da abnegação.

Destrói, assim, a fantasia!

Pois os fãs de Xuxa, há décadas, cantam em alto e bom tom as ambições que, em sua heroína, eram mais que evidentes e que, ainda hoje, lhes servem de inspiração:

“Lua de cristal que me faz sonhar, faz de mim estrela que eu já sei brilhar…”.

Direitos de imagem: https://www.flickr.com/photos/193632591@N08/51388746410/

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