ISRAEL SIMÕES丨Observação exploratória dos domesticados

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

O dia começou com as observações mais vulgares e inspiradoras. Depois de um treino de boxe e duas tapiocas com ovos mexidos, fui até o campus universitário da minha cidade realizar uma prova de proficiência em inglês. Há três anos não pisava em uma sala de aula, o que me despertou memórias, sensações e esta curiosidade sobre gente que marca a minha passagem neste mundo.

Logo ao entrar na sala me deparei com o fiscal de prova, um moço bastante magro, de pele desbotada, movimentos delicados e voz nasalada. Era gentil, me recebendo com um sorriso e indicando onde eu deveria me assentar. Na maior parte do tempo olhava para baixo, exceto quando falava, buscando um ponto fixo no fundo da sala onde pudesse se manter estável. Enquanto passava as orientações à classe, com muita calma e constância, notei que seu braço esquerdo perpassava suas costas, a mão esquerda em busca do braço direito, em claro sinal de retração, como se quisesse compensar o gesto dominador de se colocar à frente, atento e vigilante sobre a turma, com o recolhimento daqueles membros que, como a boca, nos projetam.

Recuar braços e mãos nos leva a retroceder com todo o corpo, a ceder, consentir, silenciar. Por trás dos óculos de armação grossa e do corte de cabelo com alguma pretensão de estilo, havia naquele rapaz medo. (E não caiamos no erro de pensar que a simples compleição física em desvantagem seja a causa de sua fraqueza. Especialmente nas periferias, os moleques franzinos apresentam uma audácia de movimentos, um senso de poder e dominação territorial dignos de um lutador profissional. Porque crescem correndo riscos, adquirem logo um certo eixo corporal, que denota força e capacidade de defesa).

Também notei algumas pessoas que ocupavam as carteiras. Havia um rapaz bastante forte, mas de aparência não tão masculina assim: é que ele usava uma blusa pólo pelo menos um número abaixo do seu tamanho por dentro de uma calça de sarja bege dobrada na canela. Também portava um tênis com solado de enorme espessura, como quem quer ficar mais alto. Enquanto aguardava a prova começar, observei que ele apoiava a mão esquerda sobre o seu próprio bíceps direito, eventualmente contraindo o músculo.

Narcisista? Provavelmente não. Apenas um ex-magro deslumbrado com os efeitos transformadores da testosterona.

Um tanto atrasado e afoito, outro rapaz entrou pela sala andando rápido, fazendo barulho, sacodindo um pacotinho de biscoitos salgados (apesar da proibição de levar alimentos para a prova). Tirou a blusa de frio, ajeitou a camisa social sem passar e começou a comer. Não pude deixar de notar, de canto de olho, que ele meteu a mão na embalagem, catou metade dos biscoitos e enfiou todos na boca. Claramente não parecia estar no estado de espírito que a prova requeria.

Uma moça de franja curtinha bocejou tão alto que tive que girar o pescoço para vê-la melhor. Ela estava tão pálida que parecia ter acordado de uma longa hibernação. Os cabelos cacheados com pontas amarelas (não loiras, amarelas) eram ressecados e bagunçados, mas a calça jeans parecia de marca, bem estruturada. Também usava uma dessas sandálias de plástico que estão na moda, enormes e tratoradas. Definitivamente não era uma menina pobre, mas gostava de parecer como tal.

Outras moças estavam sentadas mais atrás, mas como eu queria realizar um pequeno exercício de respiração para me concentrar na prova, não pude exercer plenamente a minha exploração bisbilhoteira. Vi que duas ou três estavam bem acima do peso ideal, com dificuldade para se ajustar à pequena cadeira. Havia também uma moça jovem com jeito de certinha, talvez evangélica, de olhos estatelados, parecendo muito engajada em realizar a prova com o máximo esmero. Por fim reparei em uma senhora com ar professoral, que inclusive respondeu uma pergunta minha dirigida objetivamente ao fiscal. Ela usava uma calça preta e sapatos fechados, aparentemente pouco confortáveis para uma prova com três horas de duração. Talvez fosse professora mesmo e experimentava algum estranhamento naquela posição telespectadora.

E então começou a prova.

***

Logo de cara me deparo com uma matéria do NY Times sobre os incêndios na Austrália, desses que ocorrem todos os anos por uma combinação de altas temperaturas, fortes ventos e clima seco. Pelo título do artigo (Enquanto a Austrália queima, seus líderes trocam insultos, traduzido), o leitor poderia pensar que o jornalista estava cobrando dos governos locais medidas de gestão da segurança, da logística e de contenção das chamas durante o verão de 2020, mas não: o texto era uma crítica a tudo que se oponha à agenda progressista, atacando políticos conservadores, empresários, até mesmo os costumes do povo australiano.

Intercalando profecias apocalípticas com fotos escuras e acinzentadas das chamas se alastrando pelas áreas rurais, Damian Cave cria uma narrativa colegial simplória, digna de revistinha infantil, para convencer o leitor de que os morcegos e coalas importam mais que os mineradores, siderúrgicos, metalurgistas e milhares de outros trabalhadores da indústria australiana.

Por que justamente este texto foi escolhido para uma prova de proficiência em inglês? Não haveria algo mais científico, minimamente isento, que suscitasse menos emoções, facilitando o desempenho técnico dos que intentavam apenas medir sua fluência no idioma?

Obviamente a academia não perde uma oportunidade de doutrinar o seu público, vendida que está aos interesses corporativistas e sindicais, cujo financiamento vem de gente que lucra com o discurso anti-sistema. Para espalhar esta mensagem digna de Xou da Xuxa, “vamos salvar o planeta”, nada como um corpo de estudantes universitários apáticos, inertes, enfermos, ou pelo menos imaturos, sem identidade, prontos para se entregar a qualquer seitazinha pseudointelectual que sirva como abrigo afetivo e referência moral.

Os estudantes universitários brasileiros se rendem à superficialidade fofa dos discursos públicos porque ela espelha a sua própria estrutura pessoal infantilizada.

E na fraqueza de seus corpos, aparências e consciências é que se estabelece o reino do relativismo e da amoralidade.

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