ISRAEL SIMÕES丨O discipulado da vulgaridade

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Ela dispensa apresentações: Madonna, o símbolo feminino da revolução sexual dos anos 80, dona de diversos hits de sucesso da música pop, que lançou moda com seu sutiã de cone e lingeries combinadas com crucifixos, agora resolveu despirocar de vez. Como se não bastasse um transtorno dismórfico para lá de incômodo, abusando dos filtros e harmonizações faciais, a cantora norte-americana virou uma espécie de mentora dos novos artistas que desejam arrebentar a porta do armário.

Britney Spears, Miley Cirus, Lil Nas X e, mais recentemente, Sam Smith, todos parecem ter sido abençoados pela Rainha do Pop antes de saírem por aí mostrando línguas, bundas, genitálias e chifres. A própria conta de Madonna no Instagram adotou uma estética de dark web, exibindo cenas bizarras de festas íntimas, orgias e rituais explicitamente satânicos.

O caso de Smith é o que mais chama a atenção. O cantor britânico apresentou, por anos, um pop com influências do blues e soul, elegante, adulto e um tanto sensível. Passou algum tempo no limbo, assumiu-se gay, depois não-binário e então retornou ao cenário musical, no ano passado. Agora estava gordo, platinado, exibindo os mamilos, com um guarda-roupa de colans brilhantes e sungas fio dental.  

Seu primeiro single da nova fase foi Unholy (Profano), um dueto com a cantora trans Kim Petras, onde fala de um marido que larga esposa e os filhos em casa para frequentar um clube de strip. A dupla fez uma apresentação no Grammy para lá de polêmica, com Smith vestido de capeta e os dançarinos emulando demônios. Foi Madonna quem os introduziu no palco.

(O episódio foi tema do artigo As pelúcias do diabo, nesta coluna: https://revistaesmeril.com.br/israel-simoes-as-pelucias-do-diabo/)

Agora Sam e Madonna se juntam no feat VULGAR, um pop eletrônico que me deixou intrigado ao ouvi-lo na semana passada. A voz dos cantores aparece carregada de distorções, sintetizadores, entremeada por sons tribais, uma melodia indiana e muita, muita percussão. A batida martela de modo vibrante sobre uma mesma base harmônica, como um corpo que repete o mesmo movimento várias vezes (trata-se de um recurso sonoro bastante erótico, extensamente explorado na música pop moderna…). O ar sombrio do single faz jus à letra, que intercala palavrões, obscenidades e frases de afirmação do tipo “Speak, bitch, and say our fucking names” (Fala, vadia, e diga a p* dos nossos nomes).

Estamos falando de música que não apenas descreve, mas sensorialmente simula sexo. Literalmente os compassos sequenciam aberturas melódicas, batidas repetidas de acordes menores, um crescente de intensidade sonora até o estouro do clímax, quando explode em sons mais abertos e exultantes. Exatamente os quatro estágios da resposta sexual: excitação, platô, orgasmo e resolução. Inconscientemente, estes recursos sensíveis servem de estímulo a um estado de êxtase, desses que os jovens experimentam em boates e shows em estádios. Eles já foram bastante explorados por Lady Gaga, Beyoncé, Rihanna e a própria Madonna, mas VULGAR parece o exemplo perfeito do que é a produção cultural americana destes tempos: uma apologia ao vazio de uma cópula animalesca.

O que Sam e Madonna nos oferecem é a trilha sonora da dança pela dança de um indivíduo autômato, masturbatório, deus de si mesmo, desamarrado de qualquer orientação moral ou lógica. Em um dos comentários mais curtidos no primeiro vídeo do single divulgado no YouTube, um jovem afirma: “vontade de sair correndo pela rua…música perfeita”. Outro seguidor define o lançamento como “irreverente, raro, caótico”.

Parece que a estética dos nossos dias está menos preocupada com dilemas éticos, políticos ou místicos. Esqueça as letras reflexivas dos Beatles ou as confissões de pecados do Queen, a rebeldia pop contemporânea é sensual e sem drama, como um encontro amoroso que não sabe o nome do parceiro no dia seguinte. Nossos filhos estão sendo atraídos menos por uma agenda de engajamento em pautas sociais do que por uma alienação prazerosa da realidade, doses de alucinação, que vão se esgotando até desembocar na ideação suicida.

Ninguém suporta uma vida orbitando em torno de um oco existencial colorido.

Na geração do TikTok, a revolução se converteu da marcha pelas ruas em dancinhas ininterruptas, como quem gira em círculos até cair tonto, exausto e abobalhado. Nem precisa frequentar uma agremiação universitária: as salas de aula do ensino fundamental já mostram os efeitos destruidores desta arquitetura psíquica minimalista e infinitamente abaixo da condição humana. As crianças e os adolescentes estão exibindo um nível de idiotia que, há poucos anos, seria diagnosticado como retardo mental, graças a músicas como VULGAR e tantas outras feitas sob encomenda para viralizar.

No Brasil, a cantora Anitta é a maior representante deste estilo musical descartável, mas até o sertanejo vem se rendendo à fórmula viciante da composição moderna. E se você pensa estar livre desta influência perniciosa por frequentar uma igreja, não se engane: a música cristã contemporânea também está permeada dos mesmos elementos alucinantes que levaram Sam Smith a migrar de uma personalidade madura aos trejeitos infantilóides de um adolescente sexualmente confuso. Tudo isso sob a justificativa de levar a mensagem ao povo, alcançar as gentes.

É exatamente este o sentido da vulgaridade na vida humana, seja na dimensão artística, política, intelectual ou eclesial: a abdicação dos traços de nobreza e distinção para favorecer as formas democráticas, que priorizam o denominador comum da sensorialidade rasteira até nos fundir à natureza de bichos soltos na selva, devorando-se uns aos outros, disputando território. Como canta a “Madame X” em um dos versos de VULGAR: “Garoto, fique de joelhos, porque sou a Madonna”.

O resultado deste ministério feminista, que por hora batizo de Discipulado da Vulgaridade, é a fabricação de homens livres da religião e escravos de outros homens.

Direitos de imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Madonna_Rebel_Heart_2015_%28cropped%29_-_scripture.jpg

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