VITOR MARCOLIN | Tia Ophelia

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Entre a Monarquia e a República

Durante uma visita a um sebo paulistano — alfarrabista para os preciosistas —, encontrei um bilhete esquecido entre as páginas amareladas de um livro velhíssimo que ainda exibia, a bico de pena, sua mensagem. No pedaço de papel estava escrito o seguinte: “Carlos, vou-me embora do Brazil; recuso-me a viver em paiz tão injusto! Tu sabes que tia Ophelia não pode (ilegível aqui) o Imperador. Convido-te, amigo querido, a vir connosco; nosso vapor parte amanhan para a Europa. (ilegível aqui) ella está demasiadamente doente, todos o sabem. Não há tempo”.  

O bilhete era compacto; as letras, miúdas. Não foi sem dificuldade que consegui decifrar o que estava escrito no verso: “Outra cousa, Carlos, cuida-te de Deodoro; o canalha é perigoso! Percebas que alguém como ele é capaz de tudo. Carlos, ele é um traidor! Um traidor, eu o repito! Confrade… (aqui há uma dobra no papel que impede a leitura) para sempre! O Paço não é mais para ti, amigo do coração. Não! Tia Ophelia sabia bem o que dizia a teu respeito (borrão aqui) e veja o que se sucedeu com a pobrezinha. Tu sabes (ilegível aqui) amor para uma vida inteira. (outra dobra) Lisboa (um rasgo) longe disto tudo!”.  

Decidi lançar mão de uma lupa e, aproximando o abajur de mesa o mais próximo possível do bilhete, prossegui: “Luiza e eu te queremos bem, mas não sob a nova divisa desta república que se inicia. Não queremos sabê-lo cúmplice desta vilania; Luiza disse que se tu ousares assinar aqueles papéis, nunca mais hás de entrar em nossa casa! Pouco importa onde estivermos nós, se cá ou lá. (um rasgo aqui) três malas, numa das quais há mais livros do que roupas, tu me conheces. Não obstante o grande mal que nos sobreveio, Luiza ri-se de tudo, a diabinha. Está a rir cá ao meu lado, estorvando-me a escrita (ilegível aqui). Cuida-te, homem, já és homem; é o que digo. Partimos amanhan, se quiseres vir ou dar-nos adeus, esteja no porto às 6 e ½”.  

A despedida foi escrita com letras ainda menores: “Com abraços fraternos, Afonso e Luiza”. E o post-scriptum saiu espremido entre a última linha e o fim do papel: “Feliz Natal! Lembra-te de tia Ophelia e de seu amor pelo Imperador. Côrte do Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1889”.  

Guardei o bilhete velho e o livro velhíssimo numa seção especial da prateleira.  

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