INTELECTUAIS & SOCIEDADE | As massas e o ópio dos intelectuais

Nati Jaremko
Nati Jaremkohttps://medium.com/@naty.jaremko
Tentando sobreviver ao mestrado em história e uma grande curiosa nesse mundo do conhecimento. Libertária. Gosto quando posso falar e pensar livremente. Começando a escrever umas coisinhas aqui e ali.

A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal.

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios

Os intelectuais adquiriram um papel central ao longo da estruturação das democracias liberais. Se antes serviam às elites políticas tradicionais, passam agora a liderar um processo de formação de imaginário ao longo do qual a abstração “povo” substitui simbolicamente lideranças hierárquicas. O monopólio do poder é mantido, mas escondido sob a falsa concepção de que as decisões vieram de um consenso popular e da participação geral nos mecanismos de atribuição de função.

A “vontade do povo” é meio para obtenção de poder arbitrário, para manutenção de privilégios, e não o fim último da atual política. A intelligentsia se arroga a posição de preceptora das massas, de guardiã de sofisticadas ferramentas de observação da realidade, e simultaneamente impõe limitações aos processos honestos de construção do conhecimento, define regras que obedecem a critérios burocráticos e não de excelência. Não dialogam com o povo, mas sim com a imagem fetichizada que têm dele. Trocando em miúdos: apresentam-se como referência no conhecimento da verdade e como representantes dos interesses populares enquanto validam um projeto de poder específico e que marginaliza os que não partilham de suas ideias.

Nesse processo, conceitos importantes para a compreensão do cenário político-social perdem seu sentido perene, as leis naturais, as regras de convívio que resistiram às provações do tempo, são substituídas por imposições circunstanciais e que refletem os arroubos de autoridade daquelas elites. A desvalorização da essência das coisas faz crescer, no mundo das ideias, um fetiche estético.

Um signo linguístico passa a ter mais importância pelo que parece explicar, do que pela realidade que ele de fato descreve. Defende-se, por exemplo, a referência momentânea de justiça, aquilo que a classe falante do momento definiu como tal, e não o que de fato é justo.  A liberdade passa a ser associada à formação de um ambiente favorável ao que é desejado pela elite intelectual, ao que na visão dela traz prazer e satisfação, ainda que tenha que ser imposto, e não ao seu significado tradicional e lógico que associa o conceito a espaços livres de interferência.  

Em momentos de grande instabilidade institucional ou de carestia intensa, é comum que a distância entre o povo e seus autointitulados representantes seja evidenciada. Nesses contextos o imaginário das relações de poder, forjado pela intelligentsia, não dá conta de ocultar as consequências reais das ideias nele contidas e as pessoas passam a hesitar e a expressar rejeição a essa cosmovisão.

O monopólio da linguagem detido por ideólogos, contudo, limita as possibilidades de expressão, já que as referências discursivas são enviesadas e rasas, restando assim uma reação com base em narrativas confusas, que por vezes incorporam os espantalhos construídos pela oposição, ou atitudes pouco estratégicas, ambas associadas à truculência e à falta de polidez.

Quando isso acontece, as massas são abandonadas por seus instrutores, são apartadas do processo de tomada de decisões e rotuladas como inimigas de si próprias, como perpetradoras dos interesses de uma elite imaginária. Deixam de ser esteticamente interessantes para os mandantes e perdem sua função no processo de manutenção do poder.

Esses intelectuais não suportam que o povo fale o que quer e o que pensa de verdade, reagem das formas mais asquerosas, com deboche e olhares de repulsa. Não há um esforço real de compreensão, eles querem mandar e não servir, fornecem fórmulas binárias e simplistas ao invés de difundirem mecanismos elaborados de reflexão. E quando tomam uma invertida, lamuriam-se, vitimizam-se, fazem-se de chocados.

Usam mecanismos opressivos e autoritários a todo momento, arrogam-se o poder de definir as ideias que podem ser expressas e pensadas, e quando criticados posam de perplexos, dizem-se agredidos, censurados. São histriônicos ao elevar privilégios à categoria de direitos e acusam os que se opõe a isso de histéricos.

Há imprecisões no modo de expressar certas insatisfações e equívocos em determinadas movimentações, e, lógico, a responsabilidade individual continua existindo. Mas a verdade é que a classe pensante tem uma dívida com o povo. Nós o acuamos, limitamos seus mecanismos de expressão, criamos barreiras retóricas para nos tornar imunes a críticas. Assumimos um papel e não o exercemos, mas fingíamos ter o controle da situação.  

Perdemos de vista o senso de proporções, fingimos saber de coisas que não sabíamos, mexemos no sentido dos signos linguísticos, moldamos o imaginário político a nosso favor enquanto simulávamos uma neutralidade científica, causamos confusão mental, e quando o comportamento resultante desse quadro de delírios que contribuímos para formar não nos apeteceu mais, passamos a fingir que não tínhamos nada a ver com isso.

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