No fim já não é possível distinguir uma coisa da outra e o ponto mais fundo do engano se atinge quando o grosseiro e o brutal, a revolta e o fanatismo passam a ser aceitos socialmente como manifestações do “autêntico”, quando são apenas o resultado de uma longa sedimentação de erros e um condensado de todas as idolatrias passadas.
“Espírito e cultura: o Brasil ante o sentido da vida” Olavo de Carvalho
O fim do ano chegou e, ainda que não se esteja exatamente de férias, é impossível não se deixar afetar por uma atmosfera bem específica que paira nessa época. É um misto de nostalgia com empolgação; o corpo dá uma relaxada pela sensação, ainda que débil, de que uma vitória fora obtida. Tem a ansiedade e o estresse de todas as movimentações, viagens, visitas, conversas por puro decoro, gastos, alguma burocracia não resolvida que ficará para o próximo ano.
Mas o fato é que, gostando mais ou menos das atividades típicas desses tempos, eles fazem nosso coração disparar, eles avivam emoções profundas e contraditórias: esperança, saudades… o mais cético dos homens não consegue deixar de antecipar, ainda que discretamente e para si mesmo, as novidades anunciadas por essa próxima etapa da vida. Nem pode deixar de celebrar, ainda que inconscientemente, a finalização de mais um ciclo: maravilha-se perante um plano que tomou forma.
Por que sentimos em conjunto esse tipo de coisa? Nem todos têm passeios charmosos marcados, viagens para lugares incríveis compradas, famílias bacanas… nem todos possuem chances realistas de mudarem algo que está ruim em suas vidas. Nem todos cumpriram o programado para aquele ano. As festas de muitos não passarão de um feriado prolongado ou até de um final de semana comum. E mesmo assim, existe algo ali, uma centelha de ânimo, que seja, uma sensação de que é mais especial.
Eu já passei muitos finais de ano trabalhando normalmente. Fiquei até os últimos dias com a semana estruturada do mesmo jeito, rotina usual. Até que…de repente…surge uma impressão, um apertinho no peito, uma lagriminha que escorre no cantinho do olho, um regozijo. Pelo outro, até: por quem encheu o quintal da casa com luzinhas coloridas, pelas crianças que gritam animadas…, mesmo quando não estamos nos sentindo particularmente altruístas.
Existe uma ordem por trás disso tudo. Neguem os relativistas o quanto quiserem, mas eles mesmos percebem, ou melhor, eles a vivem. Afinal essas emoções são manifestações de uma relação abrupta estabelecida entre símbolo e significado. Há uma base simbólica universal. Um sentido geral. E, claro, há o toque individual dado à couraça do mecanismo. Alguns decoram o quintal todo, outros assistem “Duro de Matar”; alguns, ainda, fazem birra. Saem por aí distribuindo discurso idiota, disfarçado de profundo pelo tom blasé, e dizendo que preferem mil vezes ficar em casa sozinhos fazendo alguma coisa introvertida a se render àquele sentimento bom.
Esses traços individuais são acrescidos à estrutura com o tempo. Influenciam-na, por vezes, mas isso depois de se terem deixado sugestionar por ela. Glória Steinem, por exemplo, contribuiu com a cultura americana ao expandir o conceito de Ms, quando ajudou a fundar a revista homônima, para as senhoras que, ainda que experientes, mais velhas, não fossem casadas. É um estímulo simbólico em direção ao respeito por elas. Seriam senhoritas para sempre por terem se eximido de algumas relações? Mas ela seguiu uma tradição de uso de conceitos semelhantes em outras bases linguísticas.
Esse sentimento generalizado, esse imaginário coletivo, não é uma invencionice piegas ou fruto de uma percepção ilógica da realidade. Pelo contrário, a intelecção de sua existência decorre de um posicionamento extremamente realista, que é justamente o do acolhimento da finitude dos meios humanos para a compreensão do mundo todo.
Essa não é, ainda, uma posição passiva; a aceitação da incompletude intelectual de um indivíduo torna eterna sua busca por conhecimento. O faz acatar mais possiblidades lógicas, não se limitando a analisar apenas as que abrangem um par simétrico de ponto e contraponto, ou uma relação pontualmente apreensível de causa e efeito. Nos faz não negar aquilo que tem coerência elementar, ainda que esta não possa ser explicitada por todos os sentidos humanos em todas as épocas.
Afinal, qual seria a alternativa? Um indivíduo que dá conta do universo inteiro? Um ser humano ou grupo de homens que, em determinada época, têm o poder de delimitar o alcance dos conhecimentos pertinentes a ela? “Acaba aqui!”, diriam eles. Como se explicaria a continuidade dos processos cognitivos sem uma atitude de entrega, dos que vieram antes de nós, perante a descomunal complexidade do universo, da infinitude de possibilidades para as coisas inteligíveis?
Uma terceira opção seria interromper um sistema funcional até que todas as explicações sobre ele fossem satisfatórias? E quem definiria os esclarecimentos? Como delimitar o fim de uma linha de raciocínio sem que todos tivessem a chance de elaborar perguntas sobre ela? Sabendo-se que não damos conta de entender onde pararão as etapas da História?
Os petulantes que propõem encerrar a totalidade dos conhecimentos em si mesmos dizem que têm amor à verdade, dizem que a situam acima das crendices. Ora, mas há maior superstição do que o ímpeto megalômano do controle do mundo? Há maior inimigo da verdade do que aquele que se propõe a domar a natureza impetuosa do conhecimento? Eles não acabam com as incertezas, não preenchem os espaços, ainda vazios, entre as ideias com a verdade. Eles substituem as imprecisões da realidade com o seu próprio sistema.
Eles os fazem acreditar, com a profusão de elementos culturais que escolhem como referência, que causam uma impressão, que a ordem existente é fruto de pura corrupção. Toda hierarquia é arbitrária, toda sistematização é tirânica; nunca conversam em termos de melhor ou pior, sempre nos de dominadores e dominados. Pois não teria como ser diferente. Afinal, eles explicam todas as relações através das interações do poder material. Esquecem-se do poder contido no absolutamente verdadeiro ou no cabalmente bom.
Penso nisso quando vejo as tentativas de algumas instituições de ensino de elevar rap à condição de literatura clássica ou postagens de redes sociais à de norma culta. Eu seria hipócrita se dissesse que as informalidades e os prazeres fáceis não têm um lugar reservado junto à complexidade de nossa existência. Se negasse meu apreço por esse tipo de produção cultural também. E mais ainda se fizesse um discurso reducionista em favor de uma tirania do tradicionalismo, de uma existência repleta de subserviência a regras inquestionáveis.
Mas não enxergam que a subversão arbitrária da ordem é justamente o caminho da tirania e da simplificação da realidade? Não são eles que explicam tudo através de relações binárias de poder? E que negar aos indivíduos uma experiência cultural completa, ao substituir os pilares da estética e da expressão, é justamente tirar-lhes o poder? A partir daqui eles obedecerão à métrica dos algozes do momento, ao invés de se renderem à essência transcendente do que foi produzido antes deles e que se eternizou organicamente. Se não há uma consciência previamente orquestrada que dá a medida das coisas, qualquer um pode ser maestro?
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