FILOSOFIA INTEGRAL丨O Erro dos Utopistas

Querer mudar as pessoas, arrancá-las de seus vícios, de suas vidas infrutíferas e de seus pecados parece algo louvável. Quem se esforça por tentar reformar os outros costuma ser visto como um benfeitor. Homens que se dedicam a corrigir o mundo de seus defeitos são tidos por humanitários.

Geralmente, as pessoas querem mudar as outras com boas intenções. Alguns, inclusive, acreditam que receberam um mandado de Deus para isso. Outros sentem-se vocacionados a essa empreitada e não medirão empenho em fazer dos outros melhores. 

O que não é surpresa é que o trabalho de reforma humana invariavelmente é inócuo. As pessoas não se deixam ser transformadas, principalmente para o bem, tão facilmente. A pertinácia do pecador transforma, então, a esperança do benfeitor em frustração, e a frustração logo vira ressentimento. O antes errante passa a ser visto como um ímpio obstinado em sua peregrinação pecaminosa; aquele que merecia a pregação persuasiva passa a fazer jus ao castigo purificador. O amor que conduzia o reformador, com a pirraça do reformado em não se deixar amoldar-se, converte-se em fervor corretivo. A partir daí, a vontade deste já não conta, mas somente a determinação daquele em transformá-lo. 

Todo autoritarismo é baseado no preceito de que o ditador é alguém mais capaz, do que todo o resto da população, de saber o que é bom para ela. Todavia, esse sentimento de superioridade não é instrumento exclusivo dos grandes líderes, dos poderosos que dirigem povos e nações, mas pode se manifestar em homens simples, tido por de boa índole, vistos como gente honesta e exalando as melhores intenções, como eram os escritores utopistas.

A partir do século XVI, com o descobrimento, pelos europeus, de novas e virgens terras, intelectuais como Thomas More e Tomaso de Campanella dão início a uma tradição literária que imaginava a possibilidade da criação de comunidades puras, livres da corrupção que tomara a sociedade civilizada. Seus modelos sociais viam-se capazes de transformar a humanidade em algo mais nobre. Esses escritores imaginaram coletividades perfeitas, harmoniosas, igualitárias e fraternas. Seus sonhos, postos em livros, vislumbraram o paraíso na terra e viajaram, por meio de seus textos, até o Éden.

Parece evidente que todos esses sonhadores desejavam que a sociedade melhorasse e entendiam que, para isso, era necessário que os homens se fizessem melhores. Para tanto, porém, acreditavam que somente a imposição de regras de condutas claras e bem definidas, a limitação da espontaneidade, uma igualdade coercitiva, o impedimento à livre expressão e a supressão da liberdade religiosa poderiam alcançar tal objetivo. 

No princípio, a literatura utopista não passou de um sonho, um tipo de fuga da opressão cotidiana, uma excentricidade de intelectuais. Porém, não demorou para que utopistas posteriores, como Saint-Simon, Robert Owen e Charles Fourier passassem a acreditar na possibilidade da implantação de suas sociedades ideais. Cada um do seu jeito aplicou, na prática, suas ideias e o resultado foi sempre o mesmo: um início fervoroso e promissor para logo desbancar em autoritarismo puro e simples e sem mudanças efetivas, tanto na sociedade como nos indivíduos. Onde se tentou implantar modelos rígidos de comportamento, as aparentes transformações positivas logo desapareciam para dar lugar aos velhos e conhecidos vícios humanos. O que não desaparecia, porém, era o autoritarismo que, quanto menos resultado alcançava, mais recrudescia seus métodos. Em Marx e Engels a utopia vislumbrou o mundo e os defeitos de sua aplicação, que até ali havia afetado apenas pequenos grupos e comunidades, espalhou-se por todo lado.

Os utopistas erraram por ignorar dois fatores: a impossibilidade da transformação humana através de um movimento exterior e a irresistível atração que o poder de determinar a direção da vida alheia possui. Por mais que a imposição de regras para ordenar os homens se iniciasse com boas intenções, a persistência destes em manter-se como são, manifestando os mesmos defeitos de sempre, incitava o detentor do poder não a resignar-se com a teimosia humana, mas a fortalecer cada vez mais sua autoridade. Foi assim que os maiores ditadores nasceram e se desenvolveram. 

O erro dos utopistas reformadores da humanidade foi não entender que apenas o esforço individual, por meio de um movimento interior, é capaz de transformar o homem verdadeiramente. Somente o entendimento, aliado à vontade, tem a força de elevar o indivíduo de sua existência imperfeita. Para que ocorra uma verdadeira mudança, a pessoa precisa tomar consciência do seu estado inferior e buscar ativamente sua própria evolução. 

Os autores utópicos podiam até estar certos ao identificar a corrupção dos homens, mas em vez de querer consertá-los por meio de regras e leis deveriam simplesmente louvar a evolução que idealizavam. Isso porque somente a pregação, a difusão dos bons conceitos, a propagação dos nobres valores e, principalmente, o exemplo podem causar verdadeiras transformações. Quando uma pessoa reconhece o que é bom, a tendência é desejá-lo e fazer algo para alcançá-lo. Portanto, em vez de mudá-la à força melhor seria convencê-la dos benefícios da mudança.

No entanto, nós sabemos que o que não falta é gente querendo impor seus ideais e suas ideias autoritárias. O que mais existe são assanhados esperando transformar o mundo segundo seus próprios padrões e conceitos. Alguns deles, inclusive, acreditam ter poder para isso e se são, de fato, poderosos, podem fazer grandes estragos.

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2 COMENTÁRIOS

  1. “They constantly try to escape
    From the darkness outside and within
    By dreaming of systems so perfect that no one will need to be good.” (T. S. Eliot – The Rock)

    “Eles tentam constantemente escapar
    Das trevas externas e internas
    Sonhando com sistemas tão perfeitos que ninguém precisa ser bom.”

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