Como não sou Zeus e como ainda não tenho a coragem dos despretensiosos, faltei à Missa das Cinzas; não ouvi, entrecortado pelos acordes dissonantes e pelas vozes desafinadas do coro prescindível de velhinhas, o “porque tu és pó, e ao pó hás de voltar”. Nem sonho mais em ouvir o sacerdote proferir as palavras do Gênesis em latim — é só um belo acessório. Culpado e cansado, assaz cansado, escrevo qualquer coisa na barra de pesquisa do Google e, em cinco segundos, encontro-a. É a meditação que não fiz, que deixei para depois e que, mesmo assim, ainda vale, sempre vale — como o efeito do perdão num coração arrependido. O autor da reflexão quaresmal não é nenhum padre conhecido, não é nem mesmo padre; é um poeta — e dos antigos (daqueles que se preocupavam com as coisas perenes) [e não tinham a pretensão de servir ao mundo… material].
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta piedade me despido;
Antes, quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida já cobrada,
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
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Gregório de Matos Guerra (1636-1696), o “Boca do Inferno”.
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