O que o escritor inglês diria do novo monarca?
G. K. Chesterton morreu em junho de 1936, portanto durante o curto e malogrado reinado de Eduardo VIII – que abdicou depois de 326 dias no trono a fim de poder se casar com quem lhe apetecesse. O escritor inglês foi uma das últimas vozes na mídia britânica a oferecer resistência à mudança de ideias e costumes que atingiu o século XX com a força destrutiva de uma bomba atômica. Se ele pudesse escrever durante os meses derradeiros de sua vida, provavelmente faria o leitor refletir sobre a problemática de se ter no trono inglês um rei mulherengo – como havia sido o caso de Eduardo VIII. Evidentemente sem nenhuma novidade, visto que reis mulherengos reinaram não só na Inglaterra, mas em toda a Europa cristã. Um rei inglês, inclusive, movido pelo orgulho e pela paixão, decidiu criar uma nova igreja cristã no país simplesmente porque o Papa dissera “não” ao seu pedido injustificado de divórcio.
Chesterton era dono de um estilo delicioso, o que provavelmente contribuiu para a sua popularidade no âmbito da cultura inglesa à época. Evidentemente a sua virtuose estilística era só metade daquilo que os leitores louvavam no seu trabalho. Com perspicácia, ironia e um senso de humor únicos, Chesterton tecia críticas à implosão da cultura ocidental, daí a sua relevância reconhecida pelo público. Para o leitor inglês as análises do autor de Ortodoxia tinham um sabor especial: elas frequentemente vinham emolduradas pelo panorama político e cultural da Inglaterra. O “príncipe do paradoxo”, como era chamado, foi um escritor sinceramente patriota; provavelmente por isto pôde desenvolver um senso de realidade muito superior ao dos seus pares contemporâneos.
A decadência moral e espiritual do Ocidente acentuada pela nova conjuntura delineada pelas consequências da I Guerra Mundial era tema frequente nos artigos de Chesterton. Não é difícil conjecturar o que sairia da pena do escritor se lhe fosse dado testemunhar a II Guerra Mundial, o Nazismo, o Comunismo, a coroação de Elizabeth II, a oratória de Churchill, a polarização ideológica entre o Socialismo e o Capitalismo, o Concílio Vaticano II, o estouro da revolução dos costumes, o aparecimento dos Beatles, a veemência de Margaret Thatcher, … os escândalos protagonizados pela família real. Chesterton era mestre em falar sobre os descaminhos do mundo vistos a partir do horizonte da sua querida Inglaterra.
O sucessor da rainha Elizabeth II, o agora rei Charles III, provavelmente não escaparia da pena irônica de Chesterton, escritor profundamente preocupado com a moral. Charles, seguindo quase uma regra da monarquia, havia sido mulherengo também — talvez não tanto quanto Eduardo VIII, rei contemporâneo à morte do escritor. Ora, Chesterton não era um escritor católico, mas um católico que escrevia; o autor de Ortodoxia sabia perfeitamente que aquilo que descaminhava o povo não era propriamente os pecados do rei, senão os seus pecados públicos. E o príncipe que esperou 70 anos para se tornar rei foi pródigo em escandalizar o povo inglês com os seus pecados evidentes.
“Sistematicamente”, como alguns tablóides da época afirmavam, o então príncipe Charles traía a princesa de Gales, a tão popular Lady Di. O povo ficou escandalizado. Mas a quebra dos votos matrimoniais praticamente sempre foi uma constante na monarquia europeia, um dos pecados públicos mais comuns na História. Por que o tremendo impacto? Chesterton diria que os ingleses não lamentariam a traição sofrida pela princesa Daiana se ela não tivesse morrido tragicamente; ademais, o escritor diria também que a comoção nacional gerada pela morte de Lady Di impediu que os ingleses percebessem que ela não havia sido somente vítima de traição, senão também traidora. É como se aquele terrível acidente de automóvel que matou a princesa – e o seu amante – a tivesse redimido dos seus pecados e a elevado automaticamente à máxima categoria de santidade.
A verdade é que o escritor inglês não perdoaria a ingenuidade dos leitores devotos dos tablóides. Mas não só. Chesterton não hesitaria em ironizar a facilidade com a qual todos os leitores deixam-se impregnar pelos chavões da mídia hoje em dia; como suas opiniões sobre o mundo são transmitidas pela linguagem afetada dos jornais, dos formadores de opinião que frequentemente desprezam o extraordinário da vida comum chestertoniana. G. K. Chesterton foi um dos últimos escritores influentes na mídia inglesa que manteve a consciência de que na comunicação com o leitor comum o jornalista não pode ignorar o fato de que seu leitor é alguém que está permanentemente sob a influência de imperativos maiores do que a mera política editorial. A lei natural, a religião, a moral, os valores cristalizados na ética cotidiana… É um crime desviar o homem comum do seu itinerário que o conduz ao acerto de contas com a Eternidade.
Mas se Chesterton visse as fotografias do rei Charles paramentado à moda muçulmana, como divulgado nos tablóides da internet, ele poderia dizer, não antes de passar um tempo indeterminado se recuperando do susto, que o Juízo Final chegara finalmente. E se ele soubesse do engajamento do novo rei em causas estranhas à tradição milenar da monarquia diria que agora o inimigo da Inglaterra atravessara as muralhas do reino e acomodara os seus glúteos no mais eminente assento do país. A ponte de Londres caiu sobre todas as cabeças.
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Pois é, Rubens. Para muitos britânicos, Charles III é uma vergonha. Parece que o príncipe cresceu longe, muito longe da sombra da Rainha.
Muito bem pontuado. E explica o porquê de Elizabeth não ter abdicado em favor de um filho, que, convenhamos, fora o explicitado no artigo, não se mostrou digno de nada mais que figurinha de festas.