O Natal durante a I Guerra Mundial
Para a maioria de nós, provavelmente, as notícias advindas de Brasília e a derrota no Qatar achataram a nossa consciência a ponto de quase nos fazer esquecer de que já estamos no tempo do Advento. E para a maioria de nós, infelizmente, este tempo do calendário litúrgico não significa outra coisa senão, nas palavras de Nelson Rodrigues, “um orçamento”. O Natal tornou-se mais um item na lista das despesas que estressam o homem médio em todo mês de dezembro. Mas a vulgaridade com a qual encaramos uma época tão sagrada, no entanto, nem sempre foi a tônica do momento.
Aliás, à luz da História, podemos identificar, com relativa precisão, o momento exato no qual a disposição do nativo ocidental para com a sua religião sofreu um decaimento aparentemente irremediável: foi durante a I Guerra Mundial. A Europa e as regiões sob a sua influência já vinham de um processo de empobrecimento espiritual desde, pelo menos, a Revolução Francesa, quando, como demonstrado por Alexis de Tocqueville, a máquina revolucionária recebeu de bandeja a máquina estatal das mãos do próprio Antigo Regime. No entanto, sob diversos aspectos, a colheita revolucionária entregou os seus frutos mais viçosos durante os anos fatais da guerra para acabar com todas as guerras.
De 1914 a 1918 a humanidade sofreu um abatimento moral e psicológico sem precedentes que foi refletido na sua própria causa: a indiferença e, depois, o desprezo pela religião. E um acontecimento histórico registrado durante a guerra é o exemplo perfeito da mudança do estado de espírito do homem ocidental. Foi durante o Natal de 1914, antes, portanto, do agravamento do conflito, que britânicos e alemães protagonizaram o último suspiro do verdadeiro espírito natalino. Cartas remetidas do front que, de tão surpreendentes para os seus destinatários, foram publicadas nos jornais, deram uma mostra vívida do que estava acontecendo: G. A. Farmer, um soldado da infantaria britânica, numa carta destinada à sua família em Leicester, escreveu:
“Foi realmente um Natal dos mais maravilhosos que já passei. Os homens de ambos os lados se encheram do verdadeiro sentido da festa e, de comum acordo, pararam de lutar e aceitaram uma proposta diferente e mais brilhante da vida, e ficamos em paz, tanto quanto estão vocês na boa e velha Inglaterra”.
De fato, alemães e ingleses, em diversos pontos do front ocidental, confraternizaram; trocaram presentes singelos, mas muito significativos – e valiosos – como, por exemplo, tabaco, chocolate, cigarros, biscoitos, charutos, luvas, relógios de bolso… E o palco para as improváveis celebrações foi igualmente improvável: a “terra de ninguém”, o espaço entre as trincheiras que não distavam mais do que poucas dezenas de metros umas das outras, um pedaço de terreno sombrio e desolado. Entre as crateras abertas pelas explosões das bombas e cheias da lama fétida que encobria os corpos em decomposição dos soldados abatidos, soldados inimigos cantavam canções natalinas, trocavam presentes e partilhavam da esperança do fim de toda aquela beligerância.
A mídia que voltara todas as suas atenções para o conflito ficou tão perplexa com a trégua de Natal que enviou para diversos pontos da frente ocidental jornalistas com o único propósito de registrar os fatos.
Os enviados também tinham a intenção de interceptar cartas de soldados ou oficiais – sobretudo da Inglaterra – que pudessem alimentar aquela estranha e paradoxal centelha do entusiasmo que representava o fim de uma era. Em “A Sagração da Primavera”, Modris Eksteins conta que a trégua revelou, “por sua natureza não oficial e espontânea”, a última manifestação pública da consciência ocidental frente às exigências morais da realidade da guerra. Uma geração antes, durante a guerra Franco-Prussiana – ou mesmo no início do século, durante a resistência aos exércitos napoleônicos — o europeu, na companhia cotidiana da morte, dava mostras evidentes daquele extraordinário senso moral que havia sido o verdadeiro mote das relações humanas até o Natal de 1914.
O colorido dos uniformes, a cadência altiva das marchas, a empunhadura confiante dos mosquetes, o ritmo hipnotizante dos tambores, o senso da honra e do cumprimento do dever — ainda que não fossem inabaláveis — deram lugar à frieza da máquina. E o campo de combate, outrora o palco das hábeis orquestrações de generais que preferiam a morte à desonra, e nos quais os civis podiam testemunhar o espetáculo em relativa segurança, agora cedeu lugar ao pântano gélido, fétido e corrosivo, que engole a tudo e a todos, indistintamente.
A partir de janeiro de 1915, com o avançar da guerra e a consolidação do terrível impasse das trincheiras, os soldados das diversas nações de uma civilização capenga finalmente encarnaram o espírito do mundo moderno, daquele mundo cujos primeiros frutos haviam sido colhidos em 1789. Nunca mais haveria trégua de Natal ou quaisquer tipos de respeito à religião, à realidade imaterial. Agora, todo o esforço do sacrifício do homem moderno reduzir-se-ia à pauta bélica e política do seu Estado, guiado por uma mixórdia de ideias niilistas, materialistas, cientificistas e ateístas. Os soldados que trocavam tabaco por chocolate naquela longínqua trégua de Natal de 1914 não podiam imaginar, mas eles foram os protagonistas do último ato de liberdade da História.
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