SANTO CONTO | O socorro

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em uma história real. Dedicado a Monsenhor José Dantas e à Maria (Ana) da história original, uma heroína da fé.

Barriga inchada, a menina se contorcia de dor. Já estava naquele estado havia mais de mês. Depois de já ter feito todos os exames, tentado todos os tratamentos possíveis e sem sequer chegar a um diagnóstico de que mal era aquele, Doutor Nuno capitulou:

– Olha, eu sinto muito, sinto muito mesmo. Mas o que eu tenho pra dizer pra senhora é: leva sua filha pra morrer em casa, com a família. E, se a senhora for católica, procure um padre; se for protestante, vá atrás de um pastor; se for… bom, a senhora entendeu.

Ana deu as costas e saiu sem se despedir, aflita. Passou pela imagem de São José no saguão do hospital sem dar atenção. Na calçada, com a filha no colo, suspirou, bufou, segurou o choro. A menina pesava. Já tinha seis anos, mas não conseguia andar de tanta dor. A mãe olhou o relojão digital na rua deserta: 23:45. Até em casa era uma pernada. Pensou em chamar um táxi, mas àquela hora os motoristas já estavam todos dormindo.

Seguiu com passo firme em direção ao mosteiro dos capuchinhos, ainda mais longe de casa. Parou diante do muro alto e a grande porta de madeira que separava os monges do mundo, com a filha gemendo e chorando. Tocou o sino da entrada, bateu palma, socou a porta, chutou, gritou, berrou. Ninguém atendeu. A menina ali encolhida na calçada, alheia ao desespero da mãe, lacrimejando de dor. Agarrou-a de um só puxão, e já ia saindo quando porta abriu:

– Boa noite.

Era o frei que tinha batizado a pequena, não reconheceu nem mãe nem filha, estava impaciente. Escutou a história  e ao final respondeu:

– Olha, a senhora me desculpe, mas a uma hora dessas, o que está pensando? Por que não deixa a menina no hospital, ou leva pra casa, e traz amanhã? Aí, a gente reza por ela. Aliás, é a senhora que devia estar rezando por ela! Por que não está rezando? Vai rezar, e aliás, vai rezar em casa, que não são horas de estar na rua, ainda mais com criança! Deus as abençoe em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

E fechou a porta. Ana ficou olhando atônita. Foi embora pisando duro, bufando, xingando o frei, todos os freis, o Bispo, o Papa, todos os padres do mundo. Depois se arrependeu, pediu perdão a Deus, foi rezando baixinho o que vinha na cabeça, pedindo por socorro. Mas ainda estava magoada, ou melhor, decepcionada. Perdia-se em meio às orações, não se concentrava. Lembrou da história da mulher samaritana e se sentiu abaixo de um cachorro. “Um cachorro que nem as migalhas ganhou” pensava. “É isso que eu sou, um cachorro enxotado!”, falava pra si mesma enquanto bufava de revolta e cansaço.

Era verão, e chegou no centro pingando de suor, mas decidida: não iria voltar para casa enquanto não achasse alguém que a socorresse. Sentou em um banco na praça central, precisava parar um pouco. Faltava fôlego e os braços doíam. Àquela altura, a pequena ia e vinha de desmaios. Quando acordava, voltava a gemer e chorar, o que irritava e desesperava mais ainda a mãe. Ana olhou a Catedral fechada, as luzes apagadas. A irritação virou raiva e ela voltou a perambular à procura de socorro.

A duas quadras dali, por acaso parou diante do Grande Templo da Igreja do Senhor Ressuscitado. A construção, imensa, ocupava toda uma quadra, e aproveitava o espaço de um antigo cinema. Na frente da fachada envidraçada, um banner gigante, todo colorido, com a foto do pastor e da pastora, rechonchudos, sorrindo e convidando. Embaixo, o número de um 0800 com a mensagem: LIGUE A QUALQUER HORA, ESTAMOS PRONTOS PARA TE ATENDER. DEUS É FIEL! Ficou ali ainda alguns segundos, imaginando as possibilidades, mas logo afastou o pensamento. Fechou os olhos, tentou se concentrar em qualquer outra coisa que não sabia o que era, mas estava ali. Não conseguia ordenar os pensamentos.  Ficou naquilo até que uma buzina de caminhão há quadras dali e o choro da menina trouxeram-na de volta à realidade.

Continuou por quadras e quadras, os braços já amortecidos, mas o coração doendo a cada gemido da filha. Passou por várias igrejas que conhecia, todas fechadas. Passou em frente ao seminário, também todo escuro, e nem teve ânimo de bater. O peito apertado, começaram escorrer aquelas lágrimas silenciosas, e dali a pouco estava chorando de soluçar, e ia andando, andando, e começou a rezar o Ave Maria, um atrás do outro, as palavras entre soluços.

 Andou tanto que, quando viu, estava em qualquer lugar entre um bairro que não conhecia e uma estrada de terra que levava aos sítios. À sua frente, um pequeno barracão de madeira: Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. No portal, abaixo da Cruz, a imagem bizantina da Mãe. Nos fundos, um quintal grande e um puxadinho com a luz acesa. Foi direto pra lá, o coração aos pulos, o rosto todo melado.

Padre Luís já a tinha avistado pela janela, estava à porta, e quando ela chegou já pegou a menina no colo, foi entrando com Ana atrás. Deitou a pequena no sofá. A mulher se adiantou, “Padre, por favor…”, e foi tudo o que conseguiu falar, desabou em choro. O padre fez o Sinal da Cruz nas testas das duas e foi buscar água benta. Quando voltou, Ana tentava se recompor, foi contando a história toda aos pedaços. O padre lhe deu um rosário:

– Você vai rezando, um mistério atrás do outro, e quando terminar, começa de novo, filha, e invoque os nomes de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, São José e São Miguel Arcanjo. Eu faço a minha parte aqui. Qual o nome dela?

– Maria.

– Deus seja louvado. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Mãe querida, eu peço: intercede junto a Teu Filho por essas outras filhas Tuas, Maria e Ana, e que seja feita a vontade do Pai. Amém!

Sentou-se num banquinho à cabeceira da menina e foi lá fazendo suas orações, enquanto Ana, sentada na outra ponta do sofá, desfiava o rosário. Foram assim até os primeiros raios de sol, quando a pequena Maria já dormia tranquila, a barriga de volta ao tamanho normal. O padre fez um sinal a Ana e foram à cozinha. Ela o seguiu maquinalmente. Estava tonta, confusa, como se estivesse voltando de um transe, de um pesadelo. Ele serviu café com pão e manteiga:

– Você desculpe, minha filha, eu não fiz mercado, não sabia que ia ter visita…

– Deu te abençoe e te guarde, padre – ela falou após cair de joelhos aos pés do santo homem – Deus te abençoe! E me perdoa, padre, me perdoa, porque eu pequei, eu…

Ele a puxou pela mão, levantou-a amoroso e a fez sentar numa das cadeiras:

– Um minutinho, filha.

Voltou com a estola roxa e ouviu-lhe a confissão. Depois, comeram e conversaram sobre a vida por algum tempo, até que Maria apareceu na porta:

– Mãe, tô com fome!

Padre Luís sorriu, visualizou a imagem da Mãe do Perpétuo Socorro e agradeceu. Deu a bênção à menina e perguntou:

– Maria, você reza?

Diante de um sim meio acabrunhado e pra dentro, a pequena com os olhos no chão, falou firme:

– Então hoje é o dia que vai aprender a rezar mais, a começar agradecendo a Jesus pela comida que vai comer!

Depois do café, rezaram na sala ainda um bom tempo, a menina impaciente, numa agonia de querer ir embora. Quando terminaram, a mãe levando novenas, panfletos de orações, velas, uma garrafinha de água benta e o rosário novo numa sacolinha plástica, enquanto o padre acenava da porta, as duas já longe, Maria aliviada matutava consigo, fazendo careta, “Mas que padre mais rezador!”. Lá de Cima, outra Maria sorria.


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1 COMENTÁRIO

  1. Belíssimo
    Como muitas vezes não vemos o sofrimento dos outros e não reconhecemos quando devemos ajudar nossos irmãos. Senhor, tende piedade de nós pelas vezes que negligenciamos a dor do outro.
    #VimDoPHVox

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