SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | ‘Nefarious’ para (Des)Crentes

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

“‘Mene, mene, techel upharsem.’ [Dn 5:25] Autem stultus es ut non comprendias. Continuendum est!(“Nefarious” – mensagem pós-créditos)

– Tradução: “Contou Deus o teu reino, e o acabou. Pesado foste na balança, e foste achado em falta. [Dn 5:26-27] Mas és tolo por não compreender. Devemos continuar!


O filme ‘Nefarious’ é para todo mundo; até para quem não crê em anjos e demônios. Todos devemos assistir. Há muito o que se falar do filme, mas, inspirado em C.S. Lewis e o seu ‘Cartas de um Diabo a seu Aprendiz’, falo apenas dos pontos que creio serem os principais.


PREFÁCIO

É obrigatório assistir “Nefarious”. O filme é absolutamente espetacular.

E digo ser “obrigatório” mesmo para quem não creia em anjos e demônios. Como C.S. Lewis falou sobre o seu livro Cartas de um Diabo a seu Aprendiz: “… faz pouca diferença qual maneira tu o leias. Pois, evidentemente, seu propósito não é especular sobre a vida diabólica, mas lançar luzes de um ângulo novo à vida dos homens.” (Prefácio a The Screwtape Letters)

Em suma, o filme fala sobre mim e ti. Sigo com Lewis: “Para aqueles que compartem da minha opinião, meus demônios serão símbolos de uma realidade concreta; para outros, serão personificações de uma abstração, e o livro será uma alegoria.” Não importa. De qualquer forma, a mensagem da obra será a mesma. Trata-se de uma obra de arte, e, portanto, “como n’[A Noiva do Ladrão] dos Grimm, des träumte mir nur [“é só sonho meu”]; isso é tudo apenas mito e símbolo…

Aviso a quem não gosta de saber o que acontece antes de assistir para parar aqui e ver o filme primeiro. Já quem já viu ou não se importa, pode seguir com a leitura à vontade.

SOBRE O FILME

O filme tem diversas camadas. Nenhuma delas anula ou prejudica outras. Pelo contrário, elas se complementam. De novo, a mensagem segue a mesma. Me restringirei aqui àquilo que entendo ser o principal, apesar de haver diversas outras questões importantes dignas de consideração.

Para mim, a história reflete algo que Eric Voegelin definiria como “o estado d’alma é estar em perpétuo julgamento.” O corpo vive no espaço e no tempo; porém a alma, a mente, já estaria perante o Juízo Final – ou seja, tudo o que fazemos, de certo e de errado, afeta a alma imediata e eternamente.

É por isso, por exemplo, que os 3 assassinatos do psiquiatra podem ser simultâneos, apesar de acontecerem em tempos diferentes (passado, presente, e futuro). Aliás, toda a experiência tormentosa do médico diante do demônio pode ser vista como uma punição por esses pecados e outros.

Existe a possibilidade de se ver os psiquiatras, Alan Fisher e James Martin, como sendo a mesma pessoa. O médico morreu e estaria no inferno, cercado de demônios, repassando seus erros:

[a] Oklahoma significa “pessoas vermelhas”;
[b] o padre nega o demônio e pede para ser chamado de “Lu” [de Lúcifer];
[c] os guardas apenas assistem Edward enforcar o psiquiatra;
[d] o diretor apresenta o “Evangelho Negro” e fala que Edward vivo seria uma ameaça constante a Martin;
[e] há uma evidente ausência de caridade, desde o radialista no começo até o detetive e os carrascos no final; e
[f] até Glenn Beck parece ter algo de diabólico na entrevista ao final.

O médico insiste não ter feito nada de errado com a mãe, nem com a namorada, e nem mesmo com Edward – apesar de a inclinação inicial ser de declará-lo louco. Pior, mesmo após ter sido possuído pelo demônio, ele não consegue crer em Deus. Diante da questão, ele responde: “não sei”.

Por isso, ao final, ele é “pesado e achado em falta”. Como diz o barbeiro, há sempre espaço para a redenção; mesmo no inferno. Contudo, o psiquiatra mostra-se um tolo incapaz de entender seus equívocos; devendo, pois, recomeçar – e o demônio está pronto para atormentá-lo novamente.

CONCLUSÃO

O filme nos ensina, portanto, sobre a necessidade de se praticar o bem e evitar o mal. Nós sempre estaremos em falta. Isso não é defeito. É um fato. Porém, é necessário reconhecer tal fato e trabalhar contra essas faltas; aprender com nossos erros.

A definição do que seria “bem” e “mal” não é determinada por nós, homens, mas é preciso que a descubramos. O mal seguirá sendo mal, mesmo que tentemos nos iludir argumentando em contrário. É preciso aceitar que fazemos o mal que não queremos; e não, o bem que queremos. O auto-engano evita que sanemos a nós mesmos.

É preciso estar aberto a possibilidade de se estar errado. Só assim para que possamos fazer sentido daquilo que vivemos, caso isso se demonstre incompatível com o que temos como verdadeiro. Nós não podemos ignorar nossas próprias experiências, apenas porque essas vão de encontro a crenças e opiniões que assumimos como verdadeiras.

O mundo não espera estarmos prontos para exigir de nós certas ações. É preciso caridade para reconhecer e abraçar o papel que nos é conferido em circunstância qualquer. Não somos sós. Os outros também importam. Precisamos ajudar uns aos outros, ainda que isso demande sacrifícios. Nem sempre o bem e o conveniente encontram-se juntos.

Por fim, a liberdade não pode ser um fim em si mesma. A liberdade é uma ferramenta fundamental para se fazer o bem; no entanto, tem também seus perigos. Jamais estamos livres desses. É preciso cuidado constante.

EPÍLOGO: notas

Cheguei a escrever uma sinopse, mas ficou longa demais. Para encerrar, decidi apontar para alguns dos detalhes que me chamaram a atenção e que afetaram minha conclusão do filme.

I. No filme, o demônio diz que “nomes importam”. O filme abre com o suicídio de um psiquiatra chamado “Alan Fisher”. Fisher significa “pescador” e um dos significados de Alan é “pequena pedra”. Pedra e pescador remetem a Pedro [o que, aliás, é dito por Edward Wayne Brady/Nefariâmus – o detento a espera da execução].

II. Nefariâmus escreveu um livro que seria o “Evangelho Negro”, para competir com a Bíblia. Ele avisa sua intenção em convencer o médico que substitui Fisher, James Martin [como o padre jesuíta americano], a publicá-lo [o que acaba ocorrendo].

III. Há uma breve aparição do capelão da cadeia, o padre Louis (“mas podes me chamar de ‘Lu’”), o qual conta a Edward não crer em possessão demoníaca.

IV. Perguntado se o inferno seria um estado da mente ou um lugar, Nefariâmus responde: “ambos”.

V. Martin é ateu e autoriza Nefariâmus a possuir seu corpo. O demônio informa que só autorização não basta. É preciso passar por um processo.

VI. Edward diz a James que esse cometerá 3 assassinatos:
a. O primeiro já teria ocorrido: a autorização da eutanásia da mãe de Martin. [O médico tenta argumentar tê-la feita por caridade, mas o diabo alega que ter sido conveniência.]
b. O segundo acontece durante a entrevista: o aborto do filho de Martin. [O médico poderia ter impedido, mas perde tempo defendendo a ideia e acaba fazendo a ligação tarde demais.]
c. O terceiro é a execução de Brady. [A qual é autorizada por James de joelhos e, possivelmente, não foi motivada por diagnóstico médico.]

VII. Edward consegue se livrar das algemas e enforca James. A polícia permite, assistindo tudo à distância. Logo após, o diretor da prisão, Tom Moss, leva o médico à cela de Brady. Lá encontram um caderno com a detalhes e fotos da vida de James e o Evangelho Negro. O diretor fala de como Brady seria uma ameaça a Martin enquanto estiver vivo.

VIII. As últimas palavras de Edward remetem a Daniel 5:25-28 e significam “Contou Deus o teu reino, e o acabou. Pesado foste na balança, e foste achado em falta.” Essas palavras voltam nos créditos, acrescentadas, em latim, de “Mas és um tolo por não entender. Devemos continuar!

IX. Logo em seguida, Nefariâmus toma o controle sobre o corpo de James, rouba uma arma, e força Martin a suicidar-se. Martin pede ajuda a Deus, e a pistola falha.

X. No fim, James é entrevistado por Glenn Beck a respeito do livro que publicara – o livro escrito pelo demônio. “Mas eu o reescrevi, para servir de alerta.” James revela ainda não crer em Deus. Ao sair do estúdio [Nº 2], Martin dá uma esmola a um mendigo; mas descobre que esse está sob controle do Nefariâmus.

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