BRUNA TORLAY丨O universo das seitas na era da política como entretenimento

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Digamos com todas as letras: os seguidores convictos de narcisistas movidos por interesse pessoal e discurso ilógico não são diferentes dos membros das seitas mais inusitadas. E o fenômeno das seitas é conatural ao secularismo. Logo, não é estranho que ele se manifeste também na era dos pseudo-analistas políticos que vendem entretenimento.

Semana passada me referi à nova febre adotada pelo público dos conhecidos promotores de um milagre para salvar a política brasileira em, aguardem, só mais 72 horas: a trupe do TIC TAC VAI ACONTECER! A nova febre são as transmissões ao vivo de um pastor associado a perfis de desinformação russa e operações psicológicas típicas das Forças armadas. Contudo, o dito personagem tem um apelo extra: informações muito especiais obtidas APENAS por ele. Vídeos que apenas ele vê. Fenômenos inverossímeis que apenas ele testemunha, em vídeos ou informes ultrassecretos das fontes mais seguras possíveis, tanto que só transmitem a verdade por ele. Tudo envolvido em linguagem cifrada acessível apenas a quem passa a acompanhar o grupo. Evidentemente, todo o desprezo é dirigido aos críticos. Um líder com capacidade especial única, hábil em agregar seguidores e envolvê-los mediante o sentimento de pertencimento a uma comunidade única e seleta, com relação ao resto da sociedade (cuja crítica é recusada em absoluto), é um chefe de seita. São ingredientes comuns aos grupos mais distintos, cujo ponto comum é uma imensa necessidade de acreditar; uma esperança mal dirigida.

O negócio do entretenimento, associado às técnicas de criação de seitas e à predisposição de um grupo em crer na salvação aqui e agora, neste mundo e por heróis concretos, isto é, um grupo caracterizado por uma imaginação moldada pelo gnosticismo típico da mentalidade revolucionária, converge nas transmissões diárias do pastor, que manda beijo nos ombros a seus “detratores”, enquanto exibe o churrasco de rã que prepara em suas horas de lazer. Eis o novo herói de mais de 60 mil brasileiros. Não que o conjunto do público de fato esteja pronto para se sacrificar em nome da luta pelo Brasil. Certamente muitos acompanham pela diversão, núcleo do negócio e razão de seu poder atrativo. Vale a pena assistir à série animada produzida por associados do líder da seita do Lula falecido e conservado em câmaras criogênicas, enquanto suas cópias (sósias) fazem o trabalho sujo – nem todas, pois recentemente uma morreu, o que, é claro, aperta o cerco para o sistema. A série é veiculada no canal “Clã Pelicano”, que recapitula a trajetória de Bolsonaro desde a campanha de 2018, passando pelo episódio da facada e aludindo à prisão dos patriotas acampados em Brasília no dia 09 de janeiro deste ano. “Alguns ficaram pelo caminho e foram presos. Ninguém disse que seria fácil”, comenta o narrador, em clara alusão às prisões de janeiro.

Por que tratar o risco de ser preso em operações non-sense e claramente inefetivas (convenhamos, ninguém realmente acredita, nem o Ministro Alexandre de Moraes, que os invasores do palácio do planalto tivessem capacidade de operar um golpe de estado) como um gesto semelhante à facada tomada por Bolsonaro na campanha de 2018? Por que descrever ambos como um sacrifício pelo Brasil? Por que induzir pessoas à crença de que ir para uma prisão brasileira por agir de forma absurda é um gesto nobre e necessário, numa “luta maior”?

Segundo round: por que criar sósias do Lula? Para destituir o atual presidente de legitimidade? E por que matar os sósias pouco a pouco, em meio a uma teia de intrigas sobre fatos velados ou inventados na política nacional? Para, considerando as manipulações psicológicas do parágrafo anterior, predispor as pessoas a um segundo oito de janeiro?

O negócio das seitas é altamente lucrativo. A desinformação, ancorada em mentiras estrondosas e teorias conspiratórias, também é um negócio da china. Vide os mais de 15 canais que propagam desinformação russa no Brasil, a começar pelo Arte da Guerra, do comandante Farinazzo. Do ponto de vista comercial, não há nada que se possa dizer contra os proponentes desse tipo de conteúdo. Afinal, o livre-arbítrio do ser-humano lhe permite acatar ou não a porcaria à venda a cada esquina. É da condição humana lidar com isso. Do ponto de vista moral, porém, é perfeitamente justo condenar os atos dos desonestos. Reduzir um ser-humano a instrumento é sempre imoral. Seja porque você deseja ganhar dinheiro com isso, seja porque deseja saciar seu narcisismo, seja porque gosta da sensação de poder, obtida através de um talento nato para a manipulação psicológica de pessoas feridas, vazias, frágeis ou imaturas.

No caso da nova onda, há um agravante: pode haver interesses políticos de muita gente na história toda. Talvez seja bom para uns e outros testemunharmos um segundo oito de janeiro, ou algo parecido. Quem sabe? Contudo, se for o caso (não sei se é assim), o líder da seita trabalha por interesse pessoal (tem ganhos expressivos com a estrondosa audiência), enquanto conduz milhares de pessoas a assumir o risco de prejudicarem IRREVERSIVELMENTE a própria vida. É mais grave que ter um canal de propaganda russa no youtube. É mais grave que ter trabalhado no Sputnik. É muito pior que ter compartilhado histórias da carochinha sobre o grande urso que “não deixará Maduro fazer mal ao Brasil”.

É evidente que não tenho como ajudar pessoas desesperadas por acreditar em alguma coisa estrondosa, única, fantástica e que as torne especiais. Minha atividade pública é falar a verdade e apresentar os fundamentos filosóficos de minhas opiniões sobre qualquer assunto que aborde. Eu não tenho a menor capacidade de oferecer antídotos miraculosos a almas em busca de uma solução imediata para o seu sofrimento. Porque não existem tais antídotos, e mesmo quando buscamos sanar nosso sofrimento com os recursos corretos, “a arte é longa e a vida, breve”. Demora. Não tenho nada para hoje. Nem para as próximas 72 horas. Tenho apenas compaixão pelos próximos senhores e senhoras que, hoje, rompem relações com amigos quando esses os alertam sobre o estelionato de que são vítimas. E ficam de bem, “oferecem o dedinho”, quando o amigo de Twitter que nunca viram na vida os acalma dizendo que não falou mal não, mas adora igualmente o seu ídolo e está junto com ela na luz da esperança.

A esperança é uma coisa bela, quando dirigida a quem nos ama; e uma armadilha perigosa, quando voltada a psicopatas, sofistas, homens de negócios, malucos e aproveitadores de ocasião. Investigar um pouco o funcionamento e a história das diversas seitas que arruinaram vidas ao longo do século XX é um remédio amargo para aprender alguma coisa sobre fragilidades humanas comuns, antes de acabar preso em armadilhas por puro orgulho, pecado capital que cega o ser-humano para os próprios erros, por mais evidentes que sejam.

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