SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | A “Virtude” da Polêmica

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

“Sirvam nossas façanhas de modelo à toda terra” (Hino Rio-Grandense)


Há quem afirme o hino gaúcho ser racista. Há projeto de lei na Assembleia para mudar-se o hino do RS por causa disso. Entre os que atacam e os que defendem o hino, a real mensagem da letra é ignorada. A coluna desta semana busca lançar novas luzes sobre o assunto.


Estão querendo mudar o hino racista maçônico do seu estado, e você não vai falar nada???

Era o marido da chefe, para mim, no Zap. Até parece que não me conhece. Eu já tinha falado. Ele é que ficou sabendo do imbróglio apenas agora.

Eu escrevera sobre o assunto em agosto de 2018. Há quase cinco anos; e já falara tarde. Essa história era velha quando eu comentei.

O hino não é maçônico e nem racista (como bem sabe o meu implicante amigo, o marido da chefe). O problema é que quem defende o hino não o entende, então fica fácil para seus agressores, que tampouco entendem a letra, atacarem este símbolo gaúcho com argumentos rasos e infelizes.

Grosso modo, tudo se resume a apenas um verso: “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

O principal argumento afirma que os negros foram escravizados, logo a letra infere que negros não seriam virtuosos. Portanto, o hino é racista. Trata-se de uma falácia baseada numa asnice.

Aquilo que escrevi em 2018 ainda serve hoje. Aproveito a oportunidade para reescrever aqui o que disse à época.

I. A PERGUNTA FUNDAMENTAL
A pergunta que ninguém se faz é a seguinte: no trecho do hino rio-grandense em que se canta “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, qual seria o sentido de “virtude”?

Basta responder essa questão para que a falácia se revele.

A estrofe inteira é assim:

Mas não basta p’ra ser livre
Ser forte, aguerrido, e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo


II. AS VIRTUDES E A VIRTUDE
Notai que imediatamente antes de falar em “virtude”, a letra menciona três virtudes: força, aguerrimento, e bravura. Inclusive, é comum ver hoje muitos gaúchos enfatizando o trecho “ser forte, aguerrido, e bravo”. Acham-no importante.

Só que a letra é clara no sentido de que tais virtudes são irrelevantes. É preciso prestar atenção na letra. O hino é categórico: tais virtudes sãos insuficientes para garantir a liberdade. Para ser livre é preciso… “virtude”.

Se vos parece confuso, não vos preocupeis. É confuso.

A confusão se dá por “virtude”, no contexto da letra, não fazer sentido genericamente. Se o trecho polêmico referir-se a ‘virtude em geral’, como explicar a afirmação de que, mesmo tendo força, aguerrimento, e bravura, um povo ainda poderia acabar escravo?

Afinal, seria um povo com três inegáveis virtudes; logo, um povo virtuoso. Assim, como é que um povo virtuoso poderia ser desprovido de virtude? Isso não faz sentido algum.

Portanto, a “virtude” mencionada na estrofe deve ter outro significado.

III. A VIRTÙ MAQUIAVÉLICA
Não se pode assumir que as pessoas no século XIX eram idiotas. Ao menos, não todas. Se a letra não fizesse sentido, isso teria sido percebido. Contudo, na época, entendeu-se a mensagem. Antes de atacar ou defender a letra, é nosso dever buscar esse entendimento original.

No hino gaúcho, “virtude” é uma virtude específica. A única virtude em sentido estrito que conheço foi desenvolvida por Nicolau Maquiavel no famoso livro O Princípe.

Na obra, Maquiavel não define diretamente virtù (virtude). No entanto, ele usa o termo sempre para ilustrar algo como “a capacidade de se tomar as rédeas da própria vida e superar por si as dificuldades impostas pelas circunstâncias sem depender do auxílio da fortuna (sorte)”.

Agora, pergunto: faz sentido essa definição de virtude para o contexto do hino gaúcho? Se sim, a mensagem do hino seria a seguinte: “Para se ter liberdade, é insuficiente ter força, aguerrimento, e bravura. Um povo livre precisa ter a capacidade de controlar a própria vida e superar por si as dificuldades impostas pelas circunstâncias independentemente da sorte.”

IV. O CONTEXTO DO HINO
A letra do hino foi composta durante uma guerra de independência. Buscava-se justamente ter a capacidade política de tomar decisões sobre a própria vida. Havia uma insatisfação com as decisões tomadas na capital, contra as quais os gaúchos sentiam-se impotentes.

Os gaúchos foram forjados em guerras; sabiam-se bravos, aguerridos, e fortes. Porém, não tinham qualquer virtù.

Mesmo havendo escravos legais, muitos gaúchos civilmente livres sentiam-se politicamente escravizados. O “povo que… acaba por ser escravo” referido na letra não é o negro; mas, o gaúcho – e de todas cores.

Os farroupilhas declararam independência e acabaram com a escravidão. A medida foi mais do que mera lógica de guerra, para arregimentar apoio entre a comunidade negra cativa.

A independência visava acabar com a escravidão política gaúcha, pelo que a manutenção da escravidão civil seria contraditória. A almejada virtù deveria se estender a todos os gaúchos.

V. A LIÇÃO DO HINO RIO-GRANDENSE
Como qualquer virtude, virtù precisa ser desenvolvida e praticada. Caso contrário, não apenas se deixa de alcançada, como, mesmo alcançada, se pode vir a perdê-la.

Assim, a referência à virtù no hino gaúcho teria uma finalidade pedagógica. A letra ensina que povo escravo não tem virtù por estar privado de “tomar as rédeas da própria vida”. No entanto, é possível adquirir-se e preservar virtù – enfrentando e superando “as dificuldades impostas pelas circunstâncias”.

O hino ensina que a condição de escravo não é obra do destino, mas uma circunstância histórica remediável. A letra não fala de uma situação concreta específica, mas de uma possibilidade constante; de uma condição humana inescapável.

O hino gaúcho ensina que todo e qualquer povo está sujeito à escravidão, mesmo aqueles bravos, aguerridos, e fortes. Todavia, é possível evitar ou livrar-se desse mal. A liberdade apenas depende da realização da virtù pelo povo; ao se estar disposto a tomar as rédeas da própria vida e enfrentar por si os desafios impostos pelas circunstâncias.

Desse modo, a letra do hino gaúcho se refere a toda e qualquer comunidade humana em todo e qualquer tempo e em todo e qualquer lugar. É por estarem tomados de virtù que os gaúchos servem “de modelo a toda a Terra”.

É esse o sentido do hino rio-grandense.


Hino Rio-Grandense (letra)

Como a aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o Vinte de Setembro
O precursor da liberdade

– Refrão –
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo à toda terra
– Refrão –

Mas não basta p’ra ser livre
Ser forte, aguerrido, e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo

– Refrão –

Estrofe (segunda) excluída da versão oficial:

Entre nós, reviva Atenas
Para assombro dos tiranos
Sejamos Gregos na glória
E na virtude, Romanos

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente! Uma pena, ter que explicar nos tempos tecnologicos, o que óbvio era para muitos (não todos, em tempos com preocupações mais reais, digamos assim.

    • Obrigado, Rubens.

      Eu não posso assegurar que a minha resposta seja a certa, mas tenho certeza que a pergunta que fiz é a correta. A questão que precisa ser respondida é o significado de “virtude” na estrofe.

      Antes disso, sequer há o que debater.

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