RAIMUNDO BENTES丨A prisão de Roberto Jefferson

Raimundo Bentes
Raimundo Bentes
Um jornalista investigativo qualquer

A prisão do ex-deputado federal e presidente de honra do PTB está cercada por absurdos que devem ser pontuados

Como surgiu o inquérito que levou a prisão de Roberto Jefferson

O inquérito em que se funda a prisão de Roberto Jefferson, 4874 de 2021, ou “Inquérito das Milícias Digitais”, se origina de indícios da existência de uma organização criminosa de disseminação de desinformação. Esse inquérito foi estabelecido logo após o fechamento do Inquérito 4781, o famoso “Inquérito das Fake News“,  e do Inquérito 4828, dito “Inquérito dos Atos Antidemocráticos”. Todos eles surgem com o objetivo de censurar e punir pensamentos e opiniões incompatíveis com aqueles dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Vale lembrar que são os mesmos inquéritos que levaram à prisão de Daniel Silveira, Sara Winter, Zé Trovão e Oswaldo Eustáquio, além de ter tornado Allan dos Santos um preso político, exilado nos EUA.

Irregularidades no inquérito que originou sua prisão

  1. Fake News“, “Desinformação” ou “Atos Antidemocráticos” sequer são tipificados como crimes, quanto mais podem configurar confecção de organização criminosa.
  2. No ordenamento jurídico brasileiro, a figura do juiz é meramente reativa, só atuando se e quando provocado. Em princípio, para se estabelecer uma denúncia criminal, cabe exclusivamente ao Ministério Público apresentar denúncia ao juiz, ato que estabelece inquérito. Para contornar essa etapa obrigatória, o STF utilizou um artigo de seu regimento interno, segundo o qual crimes ocorridos dentro de sua dependência física podem ser investigados por membros da corte, e o reinterpretou de modo a entender qualquer ocorrência no espaço virtual (internet) como “crime dentro das dependências do STF”.
  3. Após o estabelecimento do inquérito, o presidente da corte, Dias Toffoli, sequer sorteou o relator, distribuindo-o pessoalmente ao ministro Alexandre de Moraes, o que fere outro pilar do judiciário: a impessoalidade.
  4. Alexandre de Moraes é juiz, investigador e vítima simultaneamente, o que configura clara subversão do ordenamento jurídico.

DOI-CODI e os inquéritos sem fim

Os inquéritos estabelecidos pelo STF apresentam extrema semelhança com o Modus Operandi do DOI-CODI, operante durante o regime militar brasileiro. As semelhanças são as seguintes:

  • O inquérito nunca possui um fim, sendo sempre prorrogado indefinidamente. Quando se fecha um, abre-se outro na sequência, investigando o mesmo objeto.
  • Os inquéritos jamais vão para fase processual, em que há acesso à defesa, ao contraditório e exige amparo legal para realizar o julgamento.
  • Os inquéritos utilizam o instrumento da prisão preventiva para punir e prender opositores ao regime, o que será discutido abaixo.
  • Não se estabelece qualquer prazo para julgamento.
  • As partes não possuem acesso ou têm dificuldades de acessar os autos processuais.

Prisão preventiva domiciliar

Primeiramente, os principais propósitos da prisão preventiva são:

  • Prevenir eventual fuga do suspeito;
  • Prevenir destruição de provas dos ilícitos

Sequer foi cogitada a fuga de Roberto Jefferson, excluindo o primeiro propósito. Sobre o segundo propósito, supondo que exista o crime de opinião, as supostas provas de ilícito já estão disponíveis na internet, por se tratar de gravação de vídeo.

Analisando os propósitos da prisão preventiva, ela é evidentemente incompatível com prisão domiciliar, evidenciando ainda mais que a prisão em análise tem propósito punitivo.

Ofender ministra, é crime?

Primeiramente, de acordo com o próprio ministro Alexandre de Moraes:

“Quem não quer ser criticado, quem não quer ser satirizado, não seja candidato. Não se ofereça ao público. Não se ofereça para exercer cargos políticos. Essa é uma regra que existe desde que o mundo é mundo. E querer evitar isso por meio de uma ilegítima intervenção estatal na liberdade de expressão é absolutamente inconstitucional.”

Carmen Lúcia é pessoa pública, se apresentou ao cargo político de ministra do Supremo Tribunal Federal. Não é cabível dizer não se tratar de cargo político, uma vez que a indicação é política e o cargo também. Breve, sendo ela agente do estado, é passível de crítica pela parte soberana (pelo menos segundo a Constituição) dos partícipes da vida pública brasileira — no caso, o povo.

Mesmo desconsiderando o argumento anterior, ofensa indecorosa se enquadra em injúria e difamação, o que deveria ser julgado em uma vara cível de primeira instância, uma vez apresentada denúncia pela parte ofendida, o que sequer aconteceu. A pena para tal ato dificilmente se converte em prisão, quase sempre comutada em multa lastreada em cestas básicas.

Prevaricação por parte dos policiais

De acordo com o código penal brasileiro:

Art. 319 – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

     Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

Portanto, cabe ao policial federal denunciar atos ilegais praticados por seus superiores, principalmente por se tratar de ordem manifestamente ilegal, o que exclui qualquer ausência de culpabilidade do servidor, como lemos no art. 22. Executar a ordem torna o policial federal cúmplice da ilegalidade cometida.

Lei do abuso de autoridade (LEI Nº 13.869, DE 5 DE SETEMBRO DE 2019)

A lei de Abuso de Autoridade abrange membros do judiciário, conforme o artigo abaixo:

Art. 2º  É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a:

(…)

IV – membros do Poder Judiciário;

Em consideração a esta lei, listemos alguns artigos evidentemente violados na ordem de prisão em análise:

Art. 9º  Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.’

Art. 20.  Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 25.  Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude.

Art. 27.  Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 30.  Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Art. 32.  Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível.

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 33.  Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 37. Demorar demasiada e injustificadamente no exame de processo de que tenha requerido vista em órgão colegiado, com o intuito de procrastinar seu andamento ou retardar o julgamento:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

A lei de abuso de autoridade aparentemente não se aplica aos ministros da suprema corte, pois esta expressamente negou acesso à advogado e aos autos em inúmeros casos do inquérito, instaurou inquérito sem indícios de ilegalidade, sendo um processo completamente kafkaniano, realizou buscas e apreensões a partir de ordens expressamente ilegais, decretou censura, fechamento de redes sociais de investigados, procrastinou a fase processual do inquérito, negou liberdade e relaxamento de prisão, habeas corpus e conversão de prisão preventiva em medida cautelar. Tudo foi amplamente documentado e noticiado.

“O povo armado jamais será escravizado”

Criticar a ação de Roberto Jefferson após aplaudir a frase do presidente é hipocrisia. Os defensores do armamento civil rejeitam, acima de tudo, a tirania estatal, o monopólio da violência por parte do estado tirânico. Roberto Jefferson defendeu sua liberdade, agindo em consonância com esse princípio tão defendido.

Conclusão e ponderações finais

Roberto Jefferson teve seu passado criminoso, conforme confessou durante a investigação do mensalão. Contudo, denunciou a ilegalidade e pagou por seus crimes. Há quem diga que, sem Roberto Jefferson, o sucessor de Lula não seria Dilma Rousseff, mas José Dirceu, hipótese que dispensaria o impeachment de 2016 e o posterior renascimento da direita brasileira. Hoje, aos 69 anos, com câncer e saúde debilitada, encontra-se censurado e abandonado pelo amparo da lei e de qualquer aliado político. Mesmo que tenha feito ofensas indecorosas, são palavras. É desproporcional submetê-lo a prisão, nesse caso. Roberto Jefferson, ao atirar na polícia, transpareceu o desespero de um homem com sanidade questionável e encurralado entre escolhas terríveis:

  • Se entregar e passar seus últimos meses preso, humilhado e longe de sua família.
  • Esperar para negociar com o Ministro Anderson Torres para eventualmente ser “rifado” (considerando o histórico de Bolsonaro não cumprir sua palavra e evitar contrariar atos de Alexandre de Moraes), ser preso e passar seus últimos meses em presídio igualmente humilhado e longe de sua família.
  • Morrer atirando em termos literais e morrer em seus próprios termos.

Todos sabemos o desfecho. São tempos sombrios para a democracia, pois mesmo os arautos contrários à censura prostituíram seus valores e convicções em nome da proximidade do desfecho de uma acirrada eleição presidencial.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor