INTELECTUAIS & SOCIEDADE | A linguagem panfletária e o pensamento

Nati Jaremko
Nati Jaremkohttps://medium.com/@naty.jaremko
Tentando sobreviver ao mestrado em história e uma grande curiosa nesse mundo do conhecimento. Libertária. Gosto quando posso falar e pensar livremente. Começando a escrever umas coisinhas aqui e ali.

eles construirão suas frases por você – pensarão por você, até certo ponto – e quando necessário, darão sentido, parcialmente, até ao que vem de você mesmo

ORWELL, George. Politics and the English Lenguage – trad livre

Quem busca de fato uma compreensão da realidade fica especialmente confuso em momentos em que a política partidária inunda as mais diversas esferas da vida, e em que sua linguagem baliza os discursos da classe falante. Um observador intelectualmente atento se depara com uma série de narrativas que se desencontram, ao mesmo tempo em que simulam um debate.

Não há propostas e sua posterior contestação com base na análise dos argumentos subjacentes. Não ocorre um caminho dialético, que é característico de um processo bem estruturado de construção do conhecimento, além de essencial para reflexão. Não há sequer uma preocupação em lapidar a retórica, através de estratégias lógicas, por meio da qual serão expostas as questões. As falas são ruídos, esgotam-se em si mesmas, resumem-se a “recorte e colagem” de trechos narrativos prontos – já armazenados no imaginário e previamente associados a lados políticos simplificados – aos quais se recorre quando se quer somar à balbúrdia toda, mas sem ter que pensar para formular uma fala.  

A construção de uma frase, a organização da narrativa, a escolha dos recursos linguísticos, as associações mentais entre os signos e a realidade descrita, contribuem para o processo cognitivo. O uso da linguagem e o pensamento estão intrinsecamente relacionados, de modo que os vícios da primeira refletem uma má condução do último, e identificá-los permite uma melhor compreensão de contextos em que falhas lógicas graves impactam a vida das pessoas.

A linguagem panfletária é fundamentalmente vaga. Sua característica essencial é nunca deixar em evidência um posicionamento, tampouco suas consequências na realidade concreta. Exemplos palpáveis, metáforas e comparações inteligíveis, bem como recursos linguísticos que apontem para uma responsabilidade individual sobre a opinião disseminada são substituídos por figuras de linguagem dúbias ou que caíram em desuso, por frases imprecisas e expressões que desvinculem o emissor de sua mensagem, de modo a eximi-lo do compromisso com a verdade narrada, dissociá-lo de uma eventual implicação negativa das ideias difundidas e desobrigá-lo a garantir a efetividade de sua teoria.

 Para obter esse efeito, a classe falante recorre a conceitos que, em sua origem, descreviam uma realidade objetiva, mas que se esvaziaram de sentido em seu uso político, servindo apenas para sinalização de virtude ou para a emissão de juízos de valor sobre as posições do adversário. Exemplos são “democracia”, a qual foi atribuída a acepção de qualquer coisa positiva e “fascismo”, que é exatamente o oposto.

Outro recurso é substituir partículas de ligação simples e diretas como “de” por expressões que separam, na estrutura da oração, a premissa da conclusão, como “com relação a” e “a respeito de”. Isso cria uma estética narrativa amaneirada que confunde o leitor sobre a competência do mensageiro, além de adiar a entrega da mensagem, o que torna o texto mais vago.

Valem-se ainda de anglicismos, que abreviam as sentenças de maneira preguiçosa, pois o inglês moderno é uma língua que permite a transformação constante de verbos em termos nominais e vice-versa, desse modo, ao invés do escritor brasileiro ter que estruturar uma frase que explique, em português, uma ação, ele recorre a esse atalho linguístico que, por sua vez, também “remenda” os processos de pensamento, o que prejudica a reflexão.  

Adotam neologismos ou palavras recém dicionarizadas que possuem sufixos como “idade” ou “ista”: no lugar de “espaços” usam “espacialidades”, ao invés de “essencial” optam por “essencialista”.  Esses termos substitutos causam estranheza, seu significado ainda não pôde ser apreendido por inteiro, de modo a dissuadir o receptor de um esforço para a assimilação completa do texto, o que o torna mais suscetível a aceitar a inconsistência da mensagem final e a tomá-la por algo real.

Invocam conceitos com significados dúbios ou genéricos, mas que podem transmitir a desavisados uma aparência de seriedade e de rigor científico, tais como “virtual”, “primário”, “constituinte”, “estruturante”, ou palavras exclusivas de um vocabulário acadêmico e que também possuem sentidos variados, como “antropológico” ou “historiográfico”, mas que conferem credibilidade ao que está escrito, pois oficializam a origem do suposto conhecimento.

Esse tipo de termo maquia também a constante falta de conteúdo na parte da conclusão. Ela costuma se limitar a repetir o que já fora dito e é possível mascarar a pouca reflexão e o raciocínio obtuso através de declarações relacionadas à complexidade do que é estudado e de promessas de um aprofundamento no futuro. Isso isenta o emissor de esclarecer suas posições ou de admitir suas limitações.

Usam constantemente voz passiva, o modo subjuntivo, e uma negativa dispensável, facilmente substituída por uma reformulação do texto, tudo isso a fim de tornar ainda mais tortuosa a entrega da mensagem. Optam por sentenças como “talvez não sejam mais tão numerosos os que rejeitam a ideia”, ao invés de apostar em uma estrutura direta como “acredito que hoje muitos aceitam a ideia”. O “talvez” e sentenças que começam com “afirma-se que”, “é reconhecido” dispensam a necessidade de declarar a origem da posição – seria um “eu acho” impessoal.

A realidade é complexa e nenhum de nós está isento de tê-la anuviada por narrativas às quais já nos apegamos. A verdade existe, mas sempre a explicamos por meio de representações. Claro que alguns modelos estão mais próximos dela, apresentam mais coerência, acolhem pilares básicos de lógica e moral selecionados ao longo da tradição, mas todos estão sujeitos a dúvidas ou equívocos sobre a melhor forma de aplicar essas abstrações no mundo concreto, ainda mais em momentos em que a realidade é descrita de maneira tão caricata, como nos de auge da linguagem político-partidária.

O que me assusta, contudo, é a falta de consciência sobre as estratégias de embotamento da mente, é a substituição massiva de percepções cuidadosas e expressões detalhadas por linguagens reducionistas e discursos apelativos, é ver esse tipo de narrativa perdurar. Grande parte da responsabilidade é da intelligentsia, dos intelectuais profissionais.

Nos ambientes de referência para a construção do conhecimento as estruturas narrativas utilizadas carregam todos os vícios citados neste texto, a burocracia acadêmica conta com trechos prontos aos quais se deve recorrer para descrever um problema durante a pesquisa e com um número limitado de conclusões possíveis já estruturadas. Existe um teatro de supostas discordâncias, dentro do qual os atores são escolhidos por critérios secundários, como afinidade com algum professor ou valor afetivo do tema da pesquisa, e o desenlace do estudo está sempre dentro do esperado e é acompanhado por termos que desvinculam o pesquisador da mensagem que passa e o desobrigam de assumir sua posição no universo do conhecimento.  

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