MARCELO GONZAGA | Lolita salvará o mundo

Marcelo Gonzaga
Marcelo Gonzaga
Um simples professor e estudioso inconstante. Traduzi para o português as obras "A beleza salvará o mundo", de Gregory Wolfe, "Desejo Sexual", de Roger Scruton, e "Reflexões sobre a revolução na França", de Edmund Burke. Dei aulas de Inglês, Filosofia e História para alunos dos ensinos fundamental e médio, cursos livres sobre Filosofia e Literatura.

Na semana passada, apresentei algumas reflexões a partir da desempregada condição. Alguns amigos, sensíveis e de inteligência arguta, notaram que distribuir currículos era a verdadeira intenção do texto. Minha tentativa de comover e convencer os leitores a oferecer dinheiro em troca de algum (preferencialmente nenhum) trabalho, porém, não foi o que causou o maior número de comentários; à maioria, impressionou o episódio da minha sogra.

Não dei especial azar em relação à sogra; o problema, eu diria, é metafísico. A sogra é como uma mãe, só que sem as vantagens. Não só: vejam vocês que o incômodo causado pelos inconvenientes maternos é mitigado por uma dívida de gratidão de nossa parte, além de contar com certa familiaridade condescendente, uma agridoce nostalgia. O causado pelos inconvenientes da sogra, por outro lado, não conta com essa complacência de sentimento, e piora quando vemos em algum traço, algum gesto da esposa o mais fiel reflexo da mestra. Não sei se já foi diferente em algum momento; não lembro de exemplos de sogras na literatura ou na história, o que talvez seja evidência suficiente (em contraste, há órfãs encantadoras). Um padrão certamente há. Mas não basta; deve haver também uma regra cósmica que as obriga a ser assim.

Eu diria que o impulso de se intrometer (das sogras, que também são mães) é inversamente proporcional à vontade nossa de ouvir o que elas têm a dizer. Não posso dar certeza dessa hipótese, perfeitamente científica, porque nunca quis correr o risco de perguntar. Pode ser uma compulsão, algo genético, talvez, mas prevalece minha esperança no gênero humano. Apostaria num tipo de tentação diabólica, só que o prazer e a obstinação que o acompanham indicam outro caminho – é uma tara.

Impressionante como o mundo está repleto de tarados. Não os tarados à moda antiga, homens honestos e saudáveis, que apenas olham de forma imprudente para um decote exagerado, ou que, diante de uma minissaia, discutem longamente sobre o famoso problema da calcinha de Schrödinger: enquanto ninguém a vir, ela está e não está lá ao mesmo tempo. Uma raça em extinção. Sobre as taradas à moda antiga, não sei se existem, o que comem, onde vivem e como se reproduzem; é provável que sejam criaturas de folclore. Os tarados modernos, de ambos os sexos, são ou grosseiros, ou criminosos, ou loucos. Os primeiros precisam ser educados, e os segundos, é claro, presos.

Já os loucos são os mais intrigantes. Excitam-nos coisas estranhíssimas. A intromissão na vida alheia, como já antecipa o verbo, é um caso. Outro, mais recente, é o atual interesse por política; a mera menção a termos proibidos como eleição, fraude, esquerda, direita, carecas etc. é suficiente para armar toda uma bacanal ideológica. Não importa o contexto, nem o estudo prévio; o que importa é a adesão bovina a um lado e a investida canina contra o outro. É como briga de time de futebol; outra safadeza, diga-se de passagem. É o tipo de gente que precisa andar vestindo cuecas firmes e sutiãs com bojo grosso, pois o mais despropositado e inocente estímulo é suficiente para deixar esses degenerados animadinhos.

Até diante da leitura vemos tarados de toda ordem. Os que se orgulham de não ler, chegam a ficar ofegantes de prazer enquanto defendem sua bestialidade; aos que “gostam de ler,” bastaria ter algo escrito à disposição: bula de remédio, manual de eletrodoméstico, embalagem de xampu. Há ainda os safados medianos, os meio tarados, que não gostam de ler, mas querem gostar, e só; a delirante busca pelas delícias do ato de ler. A responsabilidade de ler sequer passa pela cabeça desse pessoal. Lemos porque devemos. Lemos porque somos gratos e temos respeito àqueles que dedicaram suas vidas a nos deixar seu legado. Lemos porque reconhecemos que nossa vida individual não é suficiente nem para nós mesmos.

Lemos porque precisamos. Lemos porque somos humanos. Você não pode deixar de ler coisas importantes “porque não gosta”. Leia sem gostar.

Precisamos dos tarados antigos para restabelecer o limite da moralidade. Marquês de Sade é exagero. Precisamos de um Nabokov.

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