A família tradicional brasileira, como todos bem sabem, consiste em pai, mãe, filhos e amante (do pai, naturalmente). Graças às ideias modernas da minha mulher, que insiste que para nós bastam os três primeiros elementos, não cheguei ainda a esse nível de tradicionalismo. Paciência. Mas há certa razão de ser nesse esquema, pelo menos até onde pude experimentar (o que exclui a amante da jogada). Não tenho, graças a Deus, uma família de comercial de margarina, em que todos parecem permanentemente felizes e abestalhados – uma pesquisa rápida no Instagram é suficiente para reconhecer a propaganda da Doriana. Uma família normal, em que os membros passam do amor ao ódio duas ou três vezes ao dia é importante para construir caráter e refletir a respeito da vida.
Num dia de especial agitação infantil, lembrei das famosas histórias de pais de família que “saíram para comprar cigarro” e desapareceram. Senti que há mais nessa história do que somente especulações sobre a ditadura. E lá estava eu, pensando em aproveitar nosso regime de exceção recentemente implantado para ir comprar um cigarro, quando me vi tomado de amor pela minha mulher. “Ela fica mais tempo sozinha com as crianças do que eu,” pensei, “e eu vou abandoná-la sozinha aos selvagens e fugir? Não posso fazer isso com ela.” E permaneci dividindo a atenção entre a septuagésima repetição da mesma brincadeira e um parkourista de um ano e meio.
Dias antes (ou depois, nem sei), uma desavença matrimonial me fez também meditativo: “Eu bem que podia sair correndo e não voltar, mas o que fizeram essas pobres crianças para serem abandonadas com a megera da mãe deles? A que futuro amaldiçoado eu as condenaria me dando por vencido e fugindo da briga?” E volto resignado e revigorado para o bom combate, determinado a lutar pelo destino dos meus filhos. Tivesse eu amante (e gostasse da dita cuja), acredito que não largaria minha família para viver com ela para não submeter a moça a tamanho sofrimento. Também não submeteria um hipotético cachorro às mazelas de uma família destruída. Arranjaria motivo que envolvesse até objetos de estimação.
Minha conclusão? Quanto mais amarras, maior a garantia de estabilidade. Em outras palavras, quanto menos liberdade, maior é nossa responsabilidade. Platão, que era grego e filósofo, deu de exemplo o anel – o de Giges – para mostrar que um sujeito passaria tranquilamente de uma imoralidade a outra se nada externo a ele o constrangesse. E a epifania apareceu: a família tradicional. É muito fácil você se aborrecer com a namorada; depois da segunda ou terceira vez, terminar deixa de ser um medo e passa a ser uma esperança. Por isso nunca vou entender os eternos namoros ou noivados de longa data (coisa de tarado), apesar de conhecer alguns casos. Uma vez casado, a burocracia ajuda a manter a situação. O primeiro filho é um motivo a mais para fazer o esforço. Mas não se engane: é muito simples se aborrecer com ambos. Hora de aparecer o segundo, e assim por diante. Estatisticamente falando, é bastante improvável se aborrecer simultaneamente com a mulher e todos os dezoito filhos. Se ocorrer, é caso de formação de quadrilha; fuja e procure a polícia.
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Minha esposa também é progressista como a tua. Nos lascamos…
São amarras que nos libertam de nós mesmos, não é?