SANTO CONTO | O tapa

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em um episódio da vida de Santa Francisca Romana

Dona Francisca poderia estar rezando seu Rosário, ou cuidando da neta, ou arrumando a casa, ou organizando alguma de suas tantas piedosas obras nos bairros miseráveis da cidade, ou simplesmente conversando com seu Arcanjo da Guarda – sim, ela tinha o privilégio de ter um Arcanjo como seu Protetor, e podia vê-lo e ouvi-lo; costumava conversar com ele por horas, encantada com os mistérios do Céu. No entanto, por educação, aceitara o convite de um grupo de senhoras tagarelas da vizinhança para um chá, e agora padecia em meio às futilidades das pessoas mais desinteressantes e frívolas que jamais conhecera. Ao seu lado, o Arcanjo a olhava com piedade, mas sério, com uma cara de “foi você quem quis estar aqui”, e toda vez que seus olhares se cruzavam ela baixava a cabeça envergonhada.

Em determinado momento, quando a situação não poderia parecer mais insuportável, a coisa foi piorando. Isso porque as conversas se enveredaram para o território da fofoca e, daí para a maledicência, foi um atalho bem curto. Muda quase o tempo todo, Dona Francisca apenas respondia com alguns monossílabos secos ou vagos e forçados sorrisos amarelos às investidas e provocações das companheiras, impaciente por ir embora, mas sem jeito de se levantar da cadeira. Assim, foi ficando. Numa furtiva troca de olhar com o Arcanjo, notou que ele a fitava com severidade e baixou a cabeça, ainda mais envergonhada e triste.

E as coisas se agravaram mais. A tagarelice descambou na exposição de intimidades e anedotas picantes e bem pouco apropriadas ao espírito piedoso da matrona. As senhoras e moças em roda, percebendo seu acanhamento, pareciam forçar os rumos e o peso da conversa enquanto trocavam olhares e risinhos maldosos entre si. Dona Francisca, agora totalmente muda e bastante corada, olhava apenas para o fundo sujo da xícara vazia que tinha nas mãos, retraída.

Num ímpeto, quase levantou e saiu, mas era como se estivesse presa ali por correntes invisíveis. Novamente, era vencida pelo respeito humano. Sentia-se dilacerada em meio ao falatório, os olhares e sorrisinhos desafiadores e maliciosos, as troças e indiretas, e, mais ainda, pelo peso e a tristeza que podia sentir do Arcanjo ali ao lado, que a olhava com insistência. Oprimida, ela amaldiçoava-se por sua covardia.

No entanto, quando o Seráfico se cansou, Dona Francisca pôde sentir na pele o peso da decepção de seu Guardião. Não podendo mais aguentar a imobilidade de sua protegida, e tendo recebido autorização de Nosso Senhor para intervir, ele fez com que ela o olhasse bem diretamente e deferiu-lhe na face direita um tapa ardido e sonoro. As faladeiras em torno emudeceram diante da cena insólita: o estalo do rosto da matrona, dado por uma mão “invisível”, enquanto a xícara que ela tinha em mãos se espatifava no chão, e continuaram mudas enquanto a viam – olhos arregalados – finalmente se levantar e sair correndo.

Já na rua, lágrimas a lhe escorrerem pelo rosto, Dona Francisca, numa mistura de tristeza e alívio profundos, seguia rapidamente ao confessionário. Silencioso, o Arcanjo a acompanhava.

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