MARCELO GONZAGA丨De olho no futuro

Marcelo Gonzaga
Marcelo Gonzaga
Um simples professor e estudioso inconstante. Traduzi para o português as obras "A beleza salvará o mundo", de Gregory Wolfe, "Desejo Sexual", de Roger Scruton, e "Reflexões sobre a revolução na França", de Edmund Burke. Dei aulas de Inglês, Filosofia e História para alunos dos ensinos fundamental e médio, cursos livres sobre Filosofia e Literatura.

Não odeio a classe média como certos filósofos, mas admito que ela tem gostos peculiares. Vocês não entenderiam. Ou talvez entendam. A lembrança do meu aniversário, que comemorei faz alguns dias, pode trazer uma luz ao que quero dizer, já que foi todo ele uma lição contra a noção pequeno-burguesa de associar o bom e o agradável. Comecemos pelo bolo escolhido por minha mulher, que fez questão de perguntar minhas preferências para, numa sádica reviravolta, comprar um que reunia tudo o que eu disse não gostar num bolo. Minha cunhada ficou boquiaberta. Eu, casado já há algum tempo, permaneci na mais estoica tranquilidade. Mas a verdadeira surpresa ficou reservada para mais tarde, durante o banho das crianças. Enquanto minha mulher resolvia um problema com o mais velho (algo sobre não querer fazer xixi antes de entrar no banho, ou não lavar o cabelo na lua cheia, ou outra coisa de suma importância), peguei o menor no colo para diminuir o tumulto. Foi então que, de dedo em riste e cheio de amor filial, o moleque atacou meu olho desprotegido.

Meu pobre olho, que no momento parecia perdido para sempre, tinha gravado o olhar plácido do agressor no instante em que desferia o golpe. Esse semblante despreocupado durante o ato criminoso, pensei, é muito comum em felinos; curioso como bebês e gatos se parecem. Enquanto eu estava paralisado pela dor e pela perplexidade, foi ele tomar seu banho sem remorsos. Meu presente era este: uma lição sobre a ingratidão. Lembrei da minha avó, que dizia, ao ver qualquer sinal de rebeldia, “se esse menino está fazendo isso agora, imagine quando tiver quinze anos? Vai bater na minha cara!” E completava: “um pai dá de comer a cem filhos, mas cem filhos não dão de comer a um pai.” Lá estava eu, vivendo na pele o vaticínio da minha avó, sustentando um ingratinho. Se está furando meu olho com um ano, imagine o que não fará com cinco? Com quinze não saberei dizer; provavelmente já estaria morto desde os dez.

Passada uma hora, e a dor não melhorava. O olho nem se dignava a abrir. E enquanto eu estava ocupado pensando em meu drama caolho, em todas as adaptações que isso traria, e se era mais conveniente usar tapa-olho ou olho de vidro, fui convencido a ir ao hospital. “Há oftalmologistas no pronto-socorro,” disseram. E lá fui eu, parecendo ator de filmes de faroeste: o cenho franzido, um olho fechado e o outro entreaberto. Ocupavam meu pensamento ainda coisas como a vantagem evolutiva do camaleão, que consegue controlar seus olhos de forma independente, e a pancadaria que aconteceria quando o médico tentasse abrir o olho lacrado. Chegando no hospital, quando já treinava para ser o Demolidor, ouvi que o pronto-socorro ocular só funcionava até às oito horas da noite, e só voltava a funcionar às oito horas da manhã. Faz sentido; as pessoas tem que ficar com os olhos fechados nesse intervalo, e não inventar emergências. É uma medida de saúde pública, incentivando hábitos mais saudáveis de sono.

Devia ter feito oftalmologia.

Mas “o que não nos mata nos faz mais fortes.” Apesar de meu olho só estar tão ruim quanto antes, tornei-me um homem mais sábio. Aprendi que não se deve revelar as preferências levianamente, que crianças pequenas e animais selvagens (passe a redundância) devem ficar longe de partes sensíveis do corpo. Que a dor intensa não é suficiente para, num reflexo justificadíssimo, largar o moleque no chão. E que há empregos mais tranquilos do que outros. É meu dever, agora, oferecer à família as lições da filosofia alemã. Vou dar para minha mulher tudo o que ela não gosta, para que aprenda a compartilhar só as coisas boas e agradáveis comigo, como ela insiste em tentar me ensinar. E acho que já é hora de ensinar ao menino os reveses da vida. Arranjar um irmão para ele parece boa ideia. Ser o filho do meio é ser atirado no limbo dos afetos familiares; não terá acesso aos privilégios do primogênito, nem aos cuidados do caçula. Ajuda a criar caráter; será um sobrevivente. O problema é ter mais um terrorista em potencial dentro de casa.

Temo pelo ano que vem.

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