SANTO CONTO | O pequeno herói

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Concentrada nas tarefas de casa e ao mesmo tempo distraída com seus pensamentos, Lucilene não notou o fogo que começou na sala depois que uma brisa derrubara a vela para São José que ela havia acendido no oratório. Estava estendendo roupas no quintal quando sentiu o cheiro estranho de queimado e ainda demorou para perceber que era a sua casa que ardia. Arremessou longe toalha e pregadores e correu para o quarto onde a bebê dormia, mas no caminho, passando pela cozinha, tropeçou numa cadeira e caiu batendo a cabeça em um armário. Não chegou a desmaiar, mas levantou zonza, bambeando, trançando as pernas, e, quando viu, estava na rua, onde caiu sentada.

Tentava pedir por socorro com o mundo turvo e girando à sua volta, até que foi acudida por Dona Zélia, vizinha ali de frente, que atravessara a rua exasperada. Balbuciou o nome da nenê e a vizinha arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca enquanto olhava para a casa que queimava com força:

– Meu Deus!

A interjeição de Dona Zélia despertou Lucilene do transe como que por mágica, e a mulher levantou de um salto, tentou correr de volta à casa, mas não havia por onde entrar. Suas pernas bambearam, ela tombou de joelhos na calçada bem em frente à casa e começou a gritar por socorro, repetindo sem parar o nome da filha, aos berros e prantos.

Já haviam chamado os bombeiros, e em volta já se amontoavam vizinhos e curiosos. Alguns homens olhavam a casa em chamas e esboçavam mentalmente uma rota de entrada e saída rápidas, ensaiavam um salvamento heroico, mas não havia mais por onde entrar. Um grupo de mulheres cercou a pobre mãe aos prantos, tentando consolá-la, e algumas senhoras, lideradas por Dona Zélia, sacaram do bolso seus Rosários e já foram desfiando as contas, pedindo à Providência pela vida da bebê sob a intercessão dos Anjos e da Virgem.

E os Céus escutaram. Três casas adiante, o pequeno Riquelme, de cinco anos, brincava no quintal de terra com seus heróis favoritos, São Miguel (cuja imagem de resina ele insistia em surrupiar do oratório da avó para participar de suas aventuras) e Homem-Aranha. O Santo Arcanjo e o aracnídeo enfrentavam uma legião de monstros de lama que ameaçavam destruir uma cidade quando o embate foi interrompido pelos berros de Lucilene e todo o burburinho da vizinhança lá na rua. Riquelme correu para ver o que era e, como seus queridos heróis, agiu, sem medo.

A ação foi tão rápida que o povo, espantado, só se deu conta do feito quando a coisa já havia acontecido: o menino passou como um raio por entre as pessoas, adentrou a casa por uma brecha entre as chamas e, logo depois, já saía com a bebê no colo. Tudo em segundos.

Quando ele entregou a pequena à mãe, enquanto a casa vinha enfim abaixo, todos em torno, olhos arregalados e bocas abertas, foram tomados por um mutismo momentâneo. Depois, vieram o choro de Lucilene, que se agarrava à filha enquanto abraçava e beijava Riquelme, os burburinhos e comentários, os vivas, os agradecimentos a Deus e aos Santos, as palmas e urros de festa ao pequeno herói. E então, as sirenes dos bombeiros.

Naquela semana e nas seguintes, circulariam pela imprensa mundo afora duas imagens: uma com o pequeno Riquelme, com uma camiseta do Homem-Aranha toda embarreada, ao lado de Lucilene com a bebê no colo; a outra, do oratório da casa, com a Santa Cruz, São José, Nossa Senhora e São Miguel, completamente preservado em meio aos escombros.


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