ISRAEL SIMÕES | Uma rolha sobre a consciência

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Por que as pessoas bebem tanto? Depois de três semanas trazendo a esta coluna textos carregados de alegorias e figuras de linguagem, quero conversar com você leitor sobre um tema mais palpável e bastante oportuno: a bebedeira dos nossos dias.

Sim, pois o Carnaval acabou, mas a festa continua. Milhares de jovens por este país afora (e uns não tão jovens assim) passarão o resto do ano entre churrascos e shows de música sertaneja embalados por álcool. Para cada porre um dia de ressaca, letargia e improdutividade. Uma baita perda de tempo para quem precisa construir um futuro.

Desde os tempos de Noé, beber é uma válvula de escape para as agruras que enfrentamos nessa vida. E tudo bem. Não esperem deste autor um legalismo puritano proibicionista (inclusive este texto foi escrito na companhia de brie, fraldinha mal passada e Pilsen…). Mas eu sempre estranhei aqueles que bebem até cair. Coisa não apenas vexaminosa, mas antinatural, contraproducente.

Quem tem o hábito de beber sabe que existe um ponto ótimo, bastante particular, é verdade, no meu caso entre a terceira e quarta taça de vinho, talvez depois de três long necks, em que ficamos tão leves e, ao mesmo tempo, tão sóbrios que atingimos aquela combinação perfeitamente caótica de boas risadas com histórias antigas, análises do cenário político, algumas fofocas inofensivas e, eventualmente, flerte, sexo.

Passar disso é como forçar um rala e rola logo depois do orgasmo. Estraga o momento.

Veja a criança, como ela insiste em não sair do mar ou sobe no toboágua tantas vezes que nem para almoçar faz uma pausa. A alegria do adulto normal é de outra natureza, tem outra frequência.

Há muitos aspectos históricos e culturais envolvidos no fenômeno, mas irei focar na dimensão psicológica mais atual: a bebedeira decorre de uma falha no processo de amadurecimento e transição para a vida adulta.

Explico.

É natural do adolescente ficar correndo atrás de prazer desenfreado, satisfação física ininterrupta. Despertado para um universo de sensações mais complexas do que aquelas vividas na infância, ele persegue, insistentemente, situações que lhe pareçam estimulantes como baladas, esportes, aventuras, brigas, paixões. O critério imperativo das escolhas é: “vai ser maneiro?”

Na busca por estabilizar as fontes de reforçamentos positivos, surgem-lhe duas promessas tipicamente modernas: a da realização profissional e a da plena satisfação sexual. Só que ambas, em geral, fracassam.

Profissionalmente este jovem tente a chegar na vida adulta com menos autonomia, reconhecimento e dinheiro que esperava alcançar quando fez o vestibular. Já na vida sexual, a experiência de consultório tem revelado uma boa dose de frustração tanto de solteiros quanto de casados. Ninguém está conseguindo atender as expectativas criadas por uma cultura paradoxalmente romântica e pornográfica.

Assim, é na bebida que este indivíduo malsucedido irá finalmente encontrar a chave para a autossatisfação. Como um adolescente que tem que se provar senhor do próprio destino, esse jovem evita abrir-se para uma realidade humana e existencial mais densa, apegando-se ao prazer que ele pode determinar a hora e o lugar para acontecer.

Se os homens antigos bebiam para esquecer as memórias da guerra, ou para relaxar das dores depois de um dia de trabalho debaixo do sol, hoje muitos bebem por covardia, para negar a ambição e o senso de dever próprios da maturidade. Uma fuga a priori.

As consequências deste comportamento recaem sobre os relacionamentos. O adulto imaturo irá priorizar os encontros superficiais, incapazes de perturbar o estado autocentrado da busca por satisfação. Os amigos, se um dia representaram aquela presença humana carregada, ambígua e cheia de mistérios para serem desvendados, agora servem apenas como companhia para a bebedeira. Quanto menos pesarem o ambiente com dramas particulares, melhor.

A situação se torna repetitiva e se esgota, mas estamos falando aqui de gente teimosa, que vai continuar bebendo mesmo com a azia batendo no cérebro. É uma lógica de evitação da realidade, a mesma que aprisiona os viciados em sexo, drogas, doces, psicotrópicos, seriados americanos, crossfit. Querem tornar a vida uma eterna noite de réveillon.

Depois reclamam dos pensamentos pululando madrugada adentro como fogos de artifício.

É a vida demandando ajuste, aterrisagem e a instalação da consciência nas camadas acima dos interesses pessoais.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

1 COMENTÁRIO

  1. Se entendi bem, o ponto central é maturidade. Teríamos perdido a noção do que é ser adulto.

    “Work hard. Party even harder.” Esse seria o lema dessas pessoas. O trabalho serve como justificativa para hedonismo.

    Uma deturpação do “carpe diem”.

    É isso? Ou entendi errado?

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