ISRAEL SIMÕES | O governo dos homens de soja

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

É impressão minha ou alguns verbos foram eliminados da língua portuguesa? Criticar, refutar, desmentir, divergir, repreender…não encontro mais por aí. A única palavra que agora nomeia as divergências banais entre duas pessoas, coisa comum na catraca do ônibus, é “atacar”. Bastam umas trocas de farpas e a palavra “ataque” aparece em todos os jornais. Um tweet mais incisivo, uma entrevista impaciente, uma piada e pronto: as manchetes fazem soar as sirenes nucleares: “provocou uma crise entre os poderes”, “caiu como uma bomba no Congresso”, é assim que dizem.

Para disfarçar tamanha uniformidade semântica, essas sônia abrãos com pose de william bonners adotaram uma mania de novela mexicana: nomes compostos. Falam em “ataque político”, “ataque virtual”, “ataque orquestrado”, “ataque sórdido”, “ataque do núcleo ideológico”…e agora o clichê “ataque à democracia”.

O jogo de criar polêmicas para encher as pautas dos noticiários é bastante antigo. O que me surpreende é quando certos opinadores de plantão, intelectuais, juristas, especialistas, filósofos e teólogos utilizam do mesmo linguajar “STFizante” jurando não ter o menor interesse em galgar um carguinho governamental, uma coluna na Folha, o engajamento das redes sociais. São pensadores livres e despretensiosos, cuja missão é elevar a discussão e trazer agendas propositivas para a nação. Será?

Pois se realmente pensam que qualquer desaforo constitui ataque, se não estão blefando, fingindo boas cartas na esperança de um lugar ao sol no debate público, então é porque já não distinguem ato e potência, realidade e possibilidade. Perderam o básico senso das proporções, que discerne com clareza amigos que se estranham em uma roda de conversa e homens que se atacam em um ringue sujo de sangue.

A terra para esses sujeitos é plana como a tela da TV; da guerra conhecem apenas as batalhas do counter-strike. Nunca lutaram, nunca pisaram em uma trincheira nem empunharam um canivete, que dirá uma arma. Não sabem o que é ataque. Para esses homens, o auge da adrenalina é uma incursão ofensiva da boiada digital, a operação militar dos robôs do whatsapp ou um bando de senhoras indignadas vestindo camisa da seleção.

Me pergunto o que os civilizados, biografados e gourmetizados farão com a massa de jovens maconheiros que, ao que tudo indica, serão descriminalizados nos próximos dias. Um estudo publicado pela Frontiers in Psychiatry, em 2017, mostrou que os usuários de maconha que reportaram, nas visitas pós-alta psiquiátrica, que continuavam usando a droga apresentaram risco 144% maior de se envolver com atos violentos comparados aos demais.

Os próprios instrumentos de controle estatal, na medida em que se tornam mais rígidos e sofisticados, tendem a gerar comportamentos disruptivos, “ataques”. Já dizia o nosso patrono da educação Paulo Freire: sem liberdade, o oprimido vira opressor.

Está evidente, portanto, que estamos diante não de um neo puritanismo, mas de um esquema sujo de poder: transtorne os estímulos, as sinapses e sensorialidades, entorne o caldo do caos social, crie um ambiente de medo e apreensão para, então, promover a ordem que vem de cima, criminalizando toda aparência de violência que vem de baixo. Mesmo que seja um palavrão qualquer.

É a afetação limpinha dos homens de soja, que somente a modernidade poderia colocar no topo da pirâmide.

Os fracos mandam em nós. F*deu.

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