SANTO CONTO | Os caranguejos

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

A meu pai Domingos

Cidade portuária, feia e fedorenta em cada canto, de um fedor de fezes, urina e peixe nada fresco em pleno calor úmido e pegajoso de janeiro, e lá estão um menino de seus 10 para 11 anos e seu pai de quarenta e tantos, a meio caminho da volta da viagem de férias numa ilha ali perto. É fim de tarde e os dois vão andando pelas ruas de paralelepípedo, tortas e irregulares, o menino observando tudo. Chamam-lhe a atenção três coisas: a grande quantidade de prostitutas de todas as idades dos 8 aos 60; a sujeira que parece estar impregnada por toda parte; e “velhice” do lugar, que parece ter nascido já velho e degradado. E tudo lhe causa uma mistura de repulsa e fascínio.

Os dois param no Mercadão do Porto, onde o fedor parece especialmente pior, nauseabundo, talvez por causa da massa humana que se concentra ali, com marinheiros, estivadores, carregadores, ambulantes, malandros, golpistas, pedintes e as ditas prostitutas, munícipes e viajantes os mais diversos, ou indo e vindo, ou sondando, ou parados à espera de uma oportunidade, de um negócio, de um trouxa, de um cliente, de um coração caridoso. Lugar de cheirinho ruim, mas pai e filho estão com fome e vão lá para comer.

Dão uma volta rápida e um tanto desinteressada pelas lojinhas do Mercadão, o menino se encanta com um chaveiro de borracha no formato de uma baleia branca e o ganha de presente, e então os dois sentam no bar mais prestigiado da região, frequentado por poderosos e pés-rapados, famoso por seu caranguejo. O pai pede logo dois. Insiste para que o filho acompanhe no pedido, que experimente o caranguejo, mas o guri torce o nariz. Pede filé de frango. Não tem. Frango a passarinho? Também não. Não tem frango. Acaba se contentando com um filé de tilápia à milanesa, bem fritinho, como especifica na hora do pedido. Mentalmente o pai revira os olhos, preocupado com aquele moleque fresco, criado a base de achocolatado e peito de frango sem pele pela mãe e pelas avós, quase sempre cercado só de mulher e sem muito exemplo de fibra masculina, mas aí engole em seco um trago de Brahma. “Por onde eu andava esse tempo todo?”, ele se lamenta. Então, lembra com gratidão e carinho de seu próprio pai, sujeito calmo e santo, sempre presente na vida do menino. “Uma hora dessas deve estar na sauna, ou indo pra missa, ou fumando seu cigarrinho na calçada em frente de casa, conversando com outros velhos”, pensa. Sorri ao lembrar das brigas homéricas dos pais por causa do cigarro, a mãe gritando, esbravejando, chispando, e sempre vencendo as batalhas até vencer a guerra e o cigarro ser banido de dentro de casa.  “Que saudade dos velhos…”

Fica ali pensando na história daquele casamento dos pais, história de tantas idas e vindas, separações e voltas, até que se assentaram mais ou menos sossegados num amor de velhice cansada. Pensa também no seu próprio casamento, ou ex-casamento, falido há tantos anos, e se entristece. Enquanto isso, tenta dar um pouco de atenção ao filho, que não para de falar. Da viagem, das ondas, das trilhas e passeios de pai e filho, dos amigos que fez na ilha, dos amigos da rua, do filme do Predador, que é censurado mas que ele vai poder assistir porque vai junto com pai, e de peixes e de baleias, do desenho do He-Man, e de uma infinidade de coisas de menino, até que chega a comida. O menino pede outra coca, a terceira já. O pai resmunga mas consente – afinal, estão de férias –, mas não se furta a discorrer, em tom professoral e solene, sobre os males do açúcar, para os quais o garoto está bem pouco ligando.  

O guri vai comendo seu peixe com cuidado, inspecionando o prato e removendo cada pedacinho de espinha e até mesmo as peles que vai encontrando em meio à casca crocante de milanesa que separa e guarda pra comer no final. Faz cara feia enquanto vê o pai se deliciando com os caranguejos, mastigando com gosto a carne branca que vai tirando das patas do bicho. A iguaria fumegante no prato de seu herói tem para ele um cheiro nojoso que só piora o futum já instaurado ali.

Estão no meio da refeição, o homem se preparando para já deixar mais um ou dois caranguejos pedidos, quando chega até eles uma mendiga de idade indefinida. É uma figura magra, franzina, de pele pardacenta clara, cabelos curtos desgrenhados, rodeada de mosquitos, e muito, muito suja, como se trouxesse consigo e representasse ela própria toda a sujeira da cidade. E, além da sujeira, o fedor. A mulher parece concentrar em si toda aquela catinga local – de urina, de fezes, de peixe podre e de cecê. Figura de dar dó, que o menino, com certa repulsa e um tanto envergonhado e com engulho, evita olhar. Ela não pede dinheiro, mas que o homem, por caridade, lhe pague um prato. Ele a olha com certa indiferença, mas a convida a sentar e diz que peça o que quiser. O menino disfarça, mas por dentro se desespera e tem vontade de ir embora. Começa a tamborilar na mesa, ansioso. Para seu alívio, a pedinte, cabisbaixa, aceita a refeição mas recusa o convite para a mesa. Pergunta se não se importam que ela sente numa outra ali perto. O pai consente. Chama um atendente e faz novo pedido: mais dois caranguejos pra ele, uma tônica pro garoto e o que mulher ali na outra mesa quiser.

Ela pede coca e caranguejos, e come vários seguidos, devagar, para a angústia do menino, que, entre impaciente e já um tanto entediado, começa a olhar para ela: a mulher vai comendo quieta e de cabeça baixa, olhos no prato, de vez em quando uma olhadela agradecida a seu pai, que vai batendo papo com o dono do bar entre uma Brahma e outra. E, olhando a mendiga comer, o guri finalmente sente dó, pena sincera, e se entristece. Lembra da mãe, que sempre dá as moedinhas ou trocados que tiver à mão aos pedintes no semáforo, e do vô, que dá esmolas gordas e para pra conversar com cada mendigo que encontra na rua. Olha então para o pai, já meio alegre das cervejas e falando alto enquanto discute política com o dono do bar. Orgulha-se do herói barbudo ali à sua frente, e depois de dar o último gole na garrafinha de tônica, solta também o primeiro bocejo – a noite já se adentra, e o gás do pequeno hiperativo começa a rarear.

Quando a mendiga, saciada, chega para agradecer a refeição, pai e filho já estão moles. O homem ainda entrega a ela uns doces de leite que havia pedido pro guri sonolento e empanzinado. O pequeno não liga. Ela agradece novamente e vai-se embora feliz.

Pouco depois, a caminho do hotel, pai e filho vão conversando sobre mil e tantas amenidades, até esquecidos do fedor local. O menino vai distraído, pensando naqueles caranguejos que nunca mais esquecerá.


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