ISRAEL SIMÕES | 08 de janeiro: a verdade.

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

As imagens da CNN provam o que todo olho atento viu: a quebradeira na sede dos três poderes não veio dos pais de família que vestem verde e amarelo.

A secretária bate em minha porta e, por uma pequena fresta, avisa: ele chegou. É um paciente novo, primeiro dia de sessão. Não o conheço, nunca sequer ouvi a sua voz, pois fez o agendamento diretamente com a clínica, depois de ver meu nome em nossa página oficial. Me dirijo ao corredor, vejo as poltronas enfileiradas, algumas pessoas sentadas e chamo pelo seu nome, quando alguém se vira em minha direção. Deste instante em diante, absolutamente tudo é objeto da minha avaliação clínica. Cada movimento, gesto, feição e mesmo os traços do rosto passam pelos meus sentidos sob o crivo do diagnóstico, da investigação das causas que o levam a me procurar. O corpo fala.

Com a experiência percebi que a minha primeira impressão estava interessada em uma certa medida de força. Ou na falta dela.

Há aqueles pacientes que reagem ao primeiro encontro com certo acanhamento: tão logo se levantam, ainda na recepção, já esboçam um leve sorriso; vem até mim com passos curtos, quadril quebrado, a cabeça levemente inclinada para o lado esquerdo; estendem a mão mantendo o cotovelo recuado e não abrem completamente os dedos; o contato pessoal lhes causa certo desconforto. Ao entrarem no consultório, sentam-se próximos à porta, apoiam-se na poltrona, abraçam a almofada. As fraquezas e carências se revelam antes que qualquer palavra seja proferida.

Outros pacientes avançam sobre mim como os pagadores de um serviço a ser prestado. Cumprimentam com segurança, olham no olho e seguem na direção do consultório até mesmo à minha frente. Os passos são firmes, o corpo permanece ereto. Tão logo sentam, desandam a falar, obrigando-me a estar atento para o momento certo de interrompe-los.

Obviamente os comportamentos não são sempre assim, radicalmente opostos, mas a medida de força pessoal está sempre ali, em cada movimento, revelando-se espontaneamente. Ela poderá indicar o nível de autoestima, de maturidade, de ansiedade, o quanto o paciente foi amado ou desprezado, se resistiu bem aos testes da adolescência, se está satisfeito com a sua profissão.

Para Freud, a simples capacidade de iniciar movimento é fonte de pulsões, sendo elas de duas classes: as pulsões sexuais (de preservação) e as pulsões do ego (de destruição). Dito de outro modo, são pulsões de vida e de morte, de amor e de ódio, as que levaram Adão a arar a terra do jardim e as que o fizeram dele ser expulso. Todos temos dentro de nós os dois vetores e precisamos deles na proporção adequada para sobreviver neste mundo.

Mas depois de séculos de prevalência das ciências úteis, a medicina e as engenharias, que levaram a vida moderna a níveis inimagináveis de conforto, entretenimento e longevidade, esta balança pode estar descalibrada: enquanto nas relações humanas impera a cordialidade, o respeito mútuo, o apego à lei e à ordem e a vigência de uma moralidade coletiva vigilante, pouco tolerante a desvios de conduta, mas necessária à manutenção da convivência pacífica entre os divergentes, na esfera do mundo físico parece inevitável a degradação, a infiltração do caos, fragmentando a relação harmônica da humanidade com a natureza. A vida barulhenta, acinzentada, de longas horas no trânsito e das inúmeras filas nas grandes cidades gera em nós uma permanente tensão, o chamado estresse, que desestabiliza a própria teia social, exigindo ainda mais autocontrole dos indivíduos.  

Fato é que o homem moderno parece bem menos agressivo que os vikings, os aborígines, os espartanos, os guerreiros romanos, os cavaleiros medievais. De blusa polo, calça jeans e sapatênis, ele passa entre mulheres e crianças sem despertar qualquer reação preventiva, nem mesmo um estímulo do sistema nervoso simpático. Talvez por esta premissa de paz é que muitos se veem paralisados diante de um assalto, acidente, sequestro ou ato terrorista. A violência é percebida como falha na Matrix, exigindo intervenção, reparo técnico.

Esta simples constatação a respeito dos modos de ser antigos e atuais nos faz estranhar os rompantes sociais disruptivos, as quebradeiras, os tumultos e revoluções dos nossos dias. Falo da violência coletiva espontânea, que mobiliza as massas na direção do conflito, obviamente excluída a guerra, que é de natureza deliberada, articulada e compulsória.

Só me ocorrem três fatores para tamanha absurdidade “incivilizatória”.

O primeiro fator de disrupção coletiva é a junção, num mesmo lugar, de indivíduos já forjados em um ambiente hostil, para os quais a violência é instinto de sobrevivência, recurso indispensável nos jogos de poder. A coletividade apenas reforça um ímpeto à insubmissão que lhes é intrínseco. As torcidas organizadas de futebol são um bom exemplo disso: reúnem, na mesma arena, uma infinidade de homens descontrolados, adversários, com os nervos à flor da pele, já acostumados às brigas de rua. Ali a confusão é certa.

O segundo fator é um espelhamento do primeiro: homens-banana, criados sob o conforto do American way of life, mas ainda dotados de testosterona, ansiosos por uma oportunidade para dar vasão a suas pulsões do ego. Novamente o esporte é a ocasião para que esses cristãos, intelectuais, engomadinhos e playboys de apartamento experimentem da sua força física por meio da ação em bando, nas confusões que são frequentes após os clássicos de futebol. Também as lutas de MMA, as corridas de Kart, os shows de rock e os megaeventos corporativos podem satisfazê-los, mas apenas parcialmente, pois são violência regrada, exigindo sua constante repetição.

O terceiro fator é o ataque de um grupo dominante contra meros indivíduos e movimentos de opinião sem a menor expressão de poder que, com o tempo, vai agregando indignações, naturalmente forjando um grupo que se levantará em rebelião para balancear as forças. É um movimento desorganizado, passageiro e sintrópico, que visa proteger a parte mais fraca da opressão absoluta. Tão logo o equilíbrio é reestabelecido, cada um retorna ao seu papel: o grupo governante irá reorganizar suas armas enquanto os indivíduos seguem suas vidas pacatas.

No primeiro caso, a explosão de violências sanguinárias; no segundo, a erupção das violências reprimidas; no terceiro, a luta entre os dois grupos.

Foi mais ou menos com este paradigma em mente que recebi as primeiras notícias sobre o 08 de janeiro, quando às sedes dos Três Poderes, em Brasília, foram depredadas, depois da Esplanada ser ocupada por uma multidão de verde e amarelo. Logo associei o episódio ao terceiro fator de disrupção: homens e mulheres atônitos com os desmandos do judiciário brasileiro sobre as eleições presidenciais, já atormentados pelo cerceamento da liberdade nos anos de pandemia, abandonados pelas instituições, ignorados pela grande mídia e individualmente incapazes de qualquer reação, somaram forças para se defenderem com o mínimo de equidade. E na efusão de indignações os impulsos falaram mais alto, impondo sobre os edifícios a mesma potência direcionada pelo STF à constituição: uma força destruidora.

Mas logo o escândalo tomou proporções bélicas: a mídia seguiu a linguagem da toga classificando os delinquentes de terroristas (nomenclatura que nunca fora usada contra Black Blocs ou membros do MST…); as prisões passavam das 2 mil pessoas; as imagens de destruição ocupavam mais tempo no noticiário que a Guerra da Ucrânia. Então tive que rever minha análise. Ainda não sabia o número de mortos e feridos (que, mais tarde, constatei ser zero), mas fato é que tamanha violência não poderia nascer do acaso, de uma soma de revoltas particulares e aleatórias.

Durante anos aqueles mesmos sujeitos verde-e-amarelo saíram às ruas para protestar pacificamente. Nem lixo ficava na rua. Eram muito civilizados para, de repente, lançarem ao esgoto suas belas biografias, filhos e empregos, convertendo-se em criminosos. Não fazia sentido.

Então passei a considerar o segundo fator de disrupção, mais sutil e de natureza menos racional e consciente: talvez aquele grupo reunisse pessoas cansadas da passividade, da submissão, das reuniões de segunda a sexta e missas nos finais de semana, dos cultos, festas, encontros de família. A hipótese que me surgiu foi de um surto coletivo, um súbito de insanidade contra tudo e todos que levou aqueles homens e mulheres, até então inofensivos, a desferirem golpes aleatórios no ar contra o que estivesse à frente, porque já não suportavam mais marchar em fila reta. Alguns analistas políticos conservadores abraçaram essa ideia, naquele pânico burguês de se descolar da militância de rua mais aguerrida.

Mas eles estavam distraídos.

Estão no YouTube e convido você, leitor, a assistir. As imagens do 08 de janeiro, veja com calma e permita-se exercer um certo olhar clínico. Não é preciso treinamento, pois como já disse, as manifestações de agressividade e fraqueza são espontâneas e autoevidentes.

Os registros das câmeras de segurança do Palácio do Planalto mostram um grupo de pessoas adentrando ao prédio infinitamente menor do que o que ocupava o gramado da Esplanada. Pelas rampas e corredores internos, elas sobem e descem, falam ao telefone, fazem selfies ou apenas permanecem paradas, abraçadas à bandeira, olhando em volta sem saber o que fazer.

Cortando para outra câmera, vemos o registro de um homem já sozinho, em outro andar do edifício, derrubando violentamente o relógio trazido por Dom João VI ao Brasil. Ele veste uma camiseta preta com a foto de Bolsonaro mas, ao realizar o movimento brusco, revela outra peça por baixo que pula para fora da calça. Por que em plena tarde de verão, em uma passeata de rua, aquele homem usava duas camisetas de manga sobrepostas?

Indo objetivamente na direção dos objetos, derrubando um por um sem qualquer manifestação de excitação ou ansiedade, apenas a agressividade que já lhe é natural, ele termina por pegar um extintor de incêndio e arremessa-lo contra a câmera.

Outra imagem mostra um homem de camisa amarela lisa, sem qualquer inscrição ou frase, segurando um pedestal metálico com o qual quebra o vidro de uma mesa que exibia documentos históricos. Veja bem: ele não ataca aquele móvel como quem quer destruir o prédio, as instituições e a ordem social vigente. Nada disso. O homem de calça jeans e sapato social (para uma manifestação?) passa pela mesa e lhe desfere um movimento firme e rápido, mantendo os olhos no horizonte, como quem quer chamar pouca atenção. Não fala com ninguém, nem parece estar acompanhado, e ainda é xingado por um outro homem de boné, com camisa da seleção, que reprova o vandalismo.

Ainda uma quarta imagem mostra um homem alto, forte, todo vestido de preto desferindo sete golpes certeiros sobre uma obra de arte com uma espécie de estaca de metal. Estranhamente a bandeira do Brasil está amarrada no pescoço sobre o peito, como um guardanapo de tecido ou espécie de lenço de cetim, conferindo-lhe uma aparência paradoxalmente bruta e metrossexual. Estava inaugurando uma nova moda? Ou amarrou a bandeira às pressas apenas para ser contabilizado nas câmeras como “bolsonarista”? Novamente, ele age sozinho, distante dos manifestantes letárgicos e aparentemente sedentários que ocupam o mesmo lugar.

Até um esquilo perceberia a diferença entre a presença ameaçadora dos criminosos e o restante do grupo que adentrou no Palácio, mas o telespectador moderno está acostumado a receber a imagem e sua interpretação, despendendo o mínimo de sinapses, inerte sobre o sofá.

Aqueles três homens já passaram em muito da agressividade adolescente. Não necessitam da validação do grupo para infringir as regras; agem sozinhos, defendem e atacam com os próprios punhos. Dos fatores de disrupção que elenquei neste texto, claramente fazem parte do primeiro grupo, que é dos mais perigosos.

Certa vez recebi um desse sujeitos no meu consultório, apenas uma única vez: pegou a minha mão por cima, apertou com força e andou até a poltrona como se fosse ele quem conduzisse a sessão. Os olhos pareciam esbugalhados, mas eram apenas vivos; não havia motivo que os levassem a se desviar. Tão logo se assentou, puxou com força a poltrona na minha direção, apoiou os cotovelos sobre a minha mesa e, com poucas palavras, expôs o seu problema. Era boa pessoa, mas claramente perturbado por aquelas pulsões que Freud tentava escrutinar.

O mínimo de atenção nos faz notar um tipo desse pelas ruas ou corredores de um shopping, pois como já expliquei, ele destoa da massa de homens civilizados e gentis da nossa época.

As imagens divulgadas esta semana pela CNN, a respeito do 08 de janeiro de 2023, só corroboram o que já era evidente: nelas o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o general Gonçalves Dias, e o capitão do Exército José Eduardo Pereira, aparecem junto a outros servidores aliados de Lula na relação mais amistosa com os invasores do Congresso, batendo papo no meio da quebradeira, indicando-lhes os caminhos, fornecendo-lhes água. Em um dos trechos, Pereira presencia um dos criminosos pegando um extintor de incêndio e nada faz para contê-lo.

Está, portanto, duas vezes óbvio que os homens que tentaram destruir as nossas instituições democráticas – ou melhor, sua sede física, já que não consta qualquer tentativa de golpe da sua parte – eram sujeitos de outra espécie, nada pacíficos, bem diferentes dos pais de família que, há quase uma década, saem às ruas para protestar com as cores da nossa bandeira. Não sou eu quem está dizendo, são eles próprios, com sua presença, agora também pelas suas companhias.

Eles eram os infiltrados.

Que uns e outros tenham se empolgado e seguido a turba ensandecida, pelos impulsos disruptivos de segunda e terceira ordem já expostos neste texto, em nada altera a responsabilidade dos verdadeiros terroristas disfarçados de patriotas.

Lamentavelmente os políticos da Direita, no lugar de denunciar insistentemente o que está mais claro do que a luz do dia, vão se encalacrar numa Comissão Parlamentar Mista de Inquérito cuja presidência e relatoria já são dadas como garantidas, pelos líderes do governo, aos petistas. Não se surpreenda se todo este imbróglio der em pizza, com ambos os lados trocando farpas, depois acordando um temporário armistício até o assunto cair no esquecimento, quando as pautas de costumes voltarem a ocupar a tribuna. Assim funcionam as coisas no Brasil: a burocracia fala mais do que os fatos por si.

Neste momento minha memória evoca as palavras do profeta Jó: “Eis que tudo isto viram os meus olhos, e os meus ouvidos o ouviram e entenderam” (Jó 13:1).

Portanto digam o que quiserem, profiram suas sentenças, leiam seus relatórios; as opiniões dos juízes pouco ou nada me interessam. Tenho dois olhos que ainda funcionam muito bem.

Em terra de cego, basta um para ser rei.

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