ISRAEL SIMÕES丨A funda do menino Nikolas

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Já apanhei de uma garota. Pronto, confesso. Depois de escrever nesta coluna, semana passada, sobre homens-betha e machos-alfa, quero dar sequência na prosa. Vamos contar a história do começo.

Pense em um menino magro, com os dentes tortos e uma cicatriz de lábio leporino. Este sou eu na bendita fase escolar: indiscutivelmente feio. Ofender minha aparência era quase uma obrigação moral, traço de honestidade, do mesmo modo que, frequentemente, me chamavam de inteligente ou talentoso, adjetivos que sempre recebi com naturalidade. Mas bonito ninguém falava e tudo bem.

Não existia o termo bullying na época. Os feios levavam como justo serem chamados de feios, os gordos de gordos, os baixinhos de baixinhos. As coisas eram como eram. Quando ofendidos revidávamos buscando um defeito no outro; não evocávamos o direito de não ser ofendido. Rebelávamo-nos contra Deus, a natureza, nossos pais, mas os ofensores tinham razão e, a partir de tanta gozação, é que empreendíamos esforços para ficarmos mais ajustados, minimamente atraentes, para sermos aceitos, como é próprio da adolescência.

Foi assim que eu iniciei minha via-crúcis por inúmeros dentistas até colocar cada dente no seu devido lugar. Também depois de tanto ser inibido pelos garotos maiores foi que comecei, aos 16 anos, o hábito de acordar e fazer flexões, uma rotina que mantenho até os dias de hoje.

O bullying funcionou como uma espécie de espelho, evidenciando minha matéria-prima, ainda disforme, exigir forja, trabalho de lapidação. Ao invés de defenestrar o inventor do espelho, decidi transformar a imagem refletida.

Ah sim, o fatídico episódio…

Eu devia ter uns 6 anos de idade quando uma das meninas da sala, por uma discussão qualquer, me chamou de dente de cavalo, algo do tipo. Como ela dava três de mim no diâmetro, respondi: gorda. Levei um tapão na cara, para a minha total surpresa e humilhação. Tentei revidar, mas ela se defendeu com ares de espanto, como quem diz: vai bater em mulher?! Desisti da briga e fui para a minha mesa pensativo.

Entendi que ser uma mulher gorda, nos jogos de poder e dominação que permeiam a infância e adolescência, era melhor do que ser um menino magrelo. Ambos sofrem de complexo, baixa autoestima, mas em um eventual conflito essa mulher parece levar vantagens: para bater, usa a força do braço; para se defender, a carta na manga da fragilidade feminina. Por inúmeras vezes presenciei meninos apanhando de meninas grandonas sem poder bater de volta.

As memórias da infância brotaram na minha cabeça quando vi, essa semana, páginas como Uol, G1, Folha, Terra, Fórum, MSN e ladeira abaixo serem tomadas pela notícia de uma briguinha igualmente colegial.

Tudo começou com um post de Thais Carla, influenciadora digital com sobrepeso e de autoestima aparentemente elevada (segundo o site Wikipédia, “ativista contra o estigma social da obesidade”). A moça surgiu em suas redes sociais seminua, com os seios pintados, dizendo que seria a nova globeleza do carnaval. Ciente da militância que Thais exerce desde a sua alçada à fama, o deputado federal Nikolas Ferreira ironizou a imagem com a frase: “Tiraram a beleza e ficou só o Globo”. Piadinha leve para qualquer show de stand-up comedy, argumento de sobra para os vigilantes do linguajar alheio.

A princípio achei o fato insignificante, apesar dos holofotes da grande mídia, até que me veio à cabeça aquelas lembranças antigas. Imaginei Nikolas e Thais no mesmo imbróglio de sala de aula e considerei aquele princípio de sobrevivência tão precocemente observado – não brigue com meninas gordas – verdadeiro.

Será?

Nikolas é um rapaz de 26 anos com cara de 14. Baixinho, magrinho, sem barba, cabelo partido de lado, mas é dos invocados, que não têm medo de ninguém. Em um debate político promovido pelo podcast Inteligência Ltda, no ano passado, ele colocou o youtuber Nando Moura no chinelo, não se inibindo diante das ameaças de agressão física feitas pelo músico. O episódio incendiou as páginas de direita das redes sociais à época.

Meninos como Nikolas cumprem uma importantíssima função social: a de mostrar aos valentões que os fracos sabem reagir. Eu mesmo tive a oportunidade de cumprir esse papel enfrentando, anos depois daquele tapa, verdadeiras gangues do fundão, com os quais já não havia diferença de gênero.

Quem passou por um colégio sabe que meninas gordas podem ser grandes bullyers, mas no debate público brasileiro, dominado por pseudointelectuais e artistas de pouca cultura, as categorias de traços que distinguem os opressores dos oprimidos são rígidas: as mulheres, os gordos, os negros e os gays são os coitados; os homens, as pessoas brancas, os sarados e os héteros, os vilões. É uma visão social tão pueril, tão deslocada da realidade, que decidi construir este texto à semelhança de um diário, na esperança de converter, pela autenticidade do relato, algumas mentes ludibriadas.

Lembro-me que, já perto do ensino médio, fui colocado para sentar ao lado de um rapaz homossexual e de uma moça negra que se dizia bissexual. Como eles sabiam que eu frequentava uma igreja evangélica, sua diversão era me contar experiências sexuais e outras vulgaridades. Certo dia aquela menina me relatou, com riqueza de detalhes, como foi se masturbar na varanda de sua casa na noite anterior à aula. Eu arregalava os olhos, eles riam.

Veja bem, eu fiz amizade com aqueles dois. Não posso chamá-los de bullyers. O menino era filho de pais separados e vivia sofrendo gozações dos colegas pelos seus trejeitos. A menina tinha uma família desestruturada e a fama de ter ingressado precocemente na vida sexual. Às vezes compúnhamos, nós três e mais uns tantos, a turma dos excluídos, o grupo dos esquisitos.

Mas no campo da crença religiosa, eu era o alvo deles.

À semelhança da minha vivência escolar, a briga de Thais e Nikolas é só mais uma evidência de que você não deveria olhar um conflito entre dois sujeitos e permitir que a sua mente, logo de imediato, sentencie quem é o tirano e quem é a vítima.

O direito à ofensa é dos mais democráticos. Todos temos um defeitinho que pode ser a ferida para os outros enfiarem o dedo. Que a natureza seja mais favorável para alguns é evidente, mas dentro de um continuum, nossa performance social só é dominante até aparecer alguém melhor do que nós para nos mostrar nossa real medida.

No confuso terreno das relações humanas, e para o desespero dos marxistas, opressores não possuem título nobiliárquico nem os oprimidos a qualificação de plebe. Uma vez que a história, em última instância, caminha pelos passos de indivíduos intrinsecamente contraditórios (ainda que não fatalmente), essas categorias são fluidas. Teríamos que centuplicar as bolsas de pesquisa das faculdades de humanas para desvelar tanta incoerência dialética espalhada pelo mundo.

Veja, por exemplo, como Meghan Markle, a esposa do príncipe herdeiro inglês, saiu da realeza entregando o puro suco do vitimismo enquanto ostenta vestidos Dior e bolsas Valentino. Não recebeu a solidariedade de todo o mainstream americano? Para uns, privilegiada, para outros, um poço de agruras digno de biografia.

Outro exemplo é Madonna, que foi alvo de críticas na internet, no último prêmio Grammy, por seu rosto desfigurado depois de tantos procedimentos estéticos. Não é Madonna branca, loira, rica e norte-americana? Por que deveríamos nos preocupar? Mas logo que começaram a pipocar fotos da cantora na internet, e com elas o espanto do público, levantaram-se jornalistas e artistas para se solidarizar com a rainha do pop (o portal Terra dedicou um artigo inteiro para defender a artista, “Aparência não apaga a importância de Madonna”, sem, contudo, evitar a crítica a sua…aparência. Nada como a patinação dialética de uma jornalista de esquerda para provar o meu ponto).   

Até mesmo Thais Carla, que processa Deus e o mundo sempre que se sente ofendida, já chamou Gisele Bündchen de “tripa” em um vídeo que circula na internet. E ainda debochou: “um papelzinho que você não sabe o que é lado e o que é frente”, ironizando a falta de curvas da modelo (na cabeça de Thais, claro).

Para você ver como o bullying é mais relativo do que imaginam nossas elites falantes, eu mesmo, ainda nos tempos de colégio (última história, caro leitor), tentei me sobressair sobre uma colega dizendo que ela comia demais e que eu não a queria em minha casa. Era apenas uma desculpa, porque ela insistia em uma festa de aniversário que eu sequer cogitava, já que meus pais não eram inclinados a visitas. Pela eficácia do ato (não rolou festa nenhuma), devo admitir: eu propositalmente a ofendi.

Foi o suficiente para sua mãe me ligar esbravejando as condições financeiras privilegiadas da família, como quem diz: “ela é gorda, mas é rica. E você?”. Mais uma vez oprimido e opressor trocando de papéis sem o menor constrangimento.

Existem outros milhares de testemunhos por aí que podem provar o argumento aqui exposto: as interações humanas encaradas como bullying, ou essa lista interminável de “fobias” que designam, hoje, qualquer deboche malicioso na vida adulta, são na verdade multivetoriais, de difícil categorização.

O mais sensato é deixar que todos se ofendam e defendam, para o devido amadurecimento das nossas personalidades, até que dimensões mais elevadas do ser façam a real distinção entre bons e maus, entre os justos e os perversos.

Deixem os Davis lançarem suas pedras.

Direitos de imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nikolas_Ferreira,_vereador.jpg

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26 COMENTÁRIOS

  1. Mais um textinho dos inimigos do politicamante correto, que questiona a legitimidade de tudo e todos que pensam diferentes deles (os esquerdopatas/marxistas-leninistas,lulopetisas do inferno)….

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