MURALHA DE LIVROS | Uma semana de clássicos

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Destaque para dois clássicos brasileiros respectivamente reabilitados pela Kírion e Editora Chafariz

A Muralha desta semana traz cinco clássicos. Dois brasileiros reabilitados, além de duas importantes obras da espiritualidade católica (uma delas, que nasce clássica agora) e mais um guia de escrita do grande Arnold Bennett. Acompanhe as resenhas a seguir, e escolha os tijolos que melhor se encaixem em sua muralha!

Destaques

O primeiro destaque da semana é uma publicação da Editora Kírion, Flor do Lácio: explicação de textos e guia de composição literária, de Cleófano Lopes de Oliveira. Originalmente publicado nos anos de 1950, e adotado por um sem-número de escolas brasileiras naquela década e nas duas seguintes, este guia tem o objetivo de ensinar a apreciar, em toda a sua plenitude, a beleza encerrada num texto e na forma literária em que ele foi expresso, e de ensinar a colher, nessa leitura, os elementos necessários para formar a habilidade de estruturar uma composição literária própria. Nele se estudam a descrição e a narrativa, desde formas mais simples até as mais complexas, primeiro na teoria, e em seguida numa porção de textos selecionados, que são apresentados com uma explicação que abrange as expressões, o plano de composição e o estudo das ideias, impressões e sentimentos. Depois, todos os mecanismos de descrição e narração que se aprendeu a ler são absorvidos na arte da escrita, com a ajuda de exercícios de vocabulário, gramática e de imitação dos grandes autores, de modo a apreender o seu segredo.

Nas palavras do próprio autor, com este manual o aluno “aprende a observar, a julgar e a exprimir-se por si, tornando-se, pouco a pouco, independente em sua sensibilidade estética e em sua expressão artística, à medida que se vai assenhorando dos recursos estilísticos e das formas de composição”, e a cultivar, assim, a língua “em que Camões chorou”, a “última flor do Lácio, inculta e bela”.

 Com essa nova empreitada editorial, a Kirion reabilita um clássico da literatura didática infelizmente relegado ao esquecimento com o avanço cada vez mais intenso das diretrizes revolucionárias sobre o ensino da língua portuguesa a partir dos anos 80 no Brasil. Para os pais e professores que estejam cansados da ineficiência do ensino do Português com base no “aprendizado” dos “gêneros textuais socialmente inseridos no cotidiano”, esta obra, que se vale do que há de melhor na composição literária para um ensino efetivo da língua, chega em ótima hora!

Destaque também para outro clássico reabilitado, a coletânea de contos Tropas e boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos, publicada pela Editora Chafariz. Ramos foi uma grande promessa para a literatura brasileira do século XX. Infelizmente, ele cometeu suicídio aos 25 anos de idade, em 1921. Antes disso, no entanto, deixou registrado seu imenso potencial literário nos contos de inspiração sertaneja que reuniu em Tropas e boiadas, em 1917.

As narrativas deste hoje pouco conhecido escritor goiano (algumas delas escritas quando ele tinha 15 anos) alcançaram relativo destaque entre a crítica nacional quando publicadas, e foram influência para o mais famoso sertanista de nossas letras, João Guimarães Rosa. Como afirma Ademir Luiz, presidente da União Brasileira dos escritores de Goiás, Hugo de Carvalho Ramos é “o poeta que inventou Goiás em prosa”. Confira abaixo um trecho de ambientação do conto “Nostalgias” e sinta a ambientação sertaneja, o clima criado pelo narrador para a estória:

“Era pelas férias, em tardes luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos de dezembro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão. Passava a correr, saltando córregos, a tua espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só, quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel ou o Raimundo do agregado, baixotes e barrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.

Gralhas e acauãs guinchavam na galharada esguia dos cerradões, sobre o arvoredo denso de ao pé dos córregos. Havia o trilo metálico das cigarras ao mormaço; e, galgando a outra banda – com a chuvarada que descera brusca para de novo abrir-se o céu, diáfano e azulíneo, ao sol glorioso, descambando além na Barra – preás levípedes, o olho reluzente e globoso de roedor espreitando em torno, saíam assustadiços das moitas da beirada, atravessavam aos pinchos a um tempo grotescos e graciosos a rampa d’argila vermelha, entranhando-se do outro lado, no catingueiro recendente. Não raro, no emaranhado dos travessões de mato que aí cobrem habitualmente o curso das ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrenta passava entre os cipoais, em coleios flexuosos, farfalhando as folhas secas derredor…”

Outros lançamentos

Pela Ecclesiae, Livro da vida, de Santa Tereza d’Ávila, autobiografia da santa espanhola devota de São José, amiga de São João da Cruz e primeira santa a receber o título de Doutora da Igreja. Na obra, Santa Tereza registra todo seu caminho rumo à santidade em sua dimensão humana, com as fraquezas e obstáculos de percurso, suas experiências místicas diante da misericórdia do Senhor até que se viesse a se tornar uma Santa de Sétima Morada.

Pela Auster, mais uma obra de Arnold Bennet sobre o poder da escrita, O ofício do escritor. Neste volume, Bennet reúne quatro ensaios sobre a arte do escritor. Antes de esclarecer as diferenças e semelhanças entre escrever uma peça e um romance, o autor medita sobre o ponto de partida da vocação artística: a observação da vida. Tece, então, interessantes comentários a respeito dos romancistas e de sua arte incomparavelmente profunda, ainda que sempre aquém da vida em si mesma. Depois de passar também pelos pormenores da elaboração de um texto dramatúrgico, isto é, de uma peça, Bennett fecha esta preciosa coleção de ensaios sobre o ofício do escritor com chave de ouro: comenta a relação entre o artista e seu público.

Trata-se de um livro excitante e indispensável para qualquer aspirante a escritor, e também para aqueles que querem reencontrar a chama da inspiração depois de muito tempo no ofício.

Fechando a Muralha da semana com chave de ouro, a Molokai lançou um título que já nasce como um clássico da espiritualidade católica, Deus no Coração, o Coração em Deus, de Dom Bernardo Bonowitz. Trata-se da transcrição de uma conferência ministrada por Bonowitz, em que o ilustre monge trapista tira a contemplação da esteira estreita do senso comum — como se fosse algo alcançável apenas para quem assume uma vida religiosa monástica. Dom Bernardo decodifica a essência da obra, quando esclarece que a solidão necessária é a de dentro, onde cabe Deus. E a partir dessa relação, estaremos aptos a nossa missão no mundo: que possamos amar (contemplar) o próximo do mesmo modo que, definitivamente, amamos (contemplamos) a nós mesmos. O autor, dessa forma evidencia que a contemplação (que quase sempre requer estar só e consigo), a vida contemplativa, não deve ser confundida com um mero ato solitário, pois é a presença de Deus se faz imprescindível nesse processo.


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